A Estética dos ‘Objectos Falantes’ no Material Antropo-cosmo-mórfico de Aniki-Bóbó
Resumo
A superfície das coisas que compõem o pró-filme constitui a concha/significativo escolhido para moldar a alma do mundo fílmico ou a sua imagem antropo-cosmo-mórfica dada pelas técnicas da linguagem cinematográfica. O resultado é a criação de um “mundo possível” complexo e com multicamadas, constituído por partes discursivas que falam através da dramaturgia e da estética do filme, numa sócio-semântica que transfigura a matéria de corpos e objectos através dos mecanismos de re-significação fílmica. Entre estes, a montagem intelectual, bem como todos os sinais gráficos e sonoros que aparecem em cena, devem ser identificados. Estes sinais destacam-se pela sua capacidade metafórico-discursiva, tal como será analisado no filme Aniki-Bóbó (1942) de Manoel de Oliveira: as palavras escritas que servem para dar voz à matéria inanimada (saco de Carlitos); as formas modeladas que reproduzem alegorias materiais ou duplas do corpo humano (boneco); os materiais frágeis que se referem à própria fragilidade das crianças; o aço e o ferro das infraestruturas mecanizadas que mostram a modernização do país; a arquitectura clássica, a natureza do lugar e os espaços livres e ao ar livre de jogos, em oposição aos espaços fechados que recordam instituições pedagógicas subdesenvolvidas; e entre estas últimas, o lugar liminar por excelência, simbolizado pela ‘Loja das Tentações’. No conjunto fílmico, corpos, lugares e objectos são, assim, configurados como partes interligadas de um único mundo compacto, no qual o cosmos se reflecte no antropo, e o antropo no cosmos, a fim de transfigurar, numa chave metafórica, a cultura imaterial, referindo-se às mudanças na identidade nacional. Esta fábula alegórica da cultura pedagógica portuguesa acaba por propor a possibilidade de uma mudança social (e política), projectada num futuro justo sem ditadura (vitória do bem sobre o mal).
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