A intermedialidade como narrativa histórica em Mistérios de Lisboa
Resumo
A produção cinematográfica volumosa de Raúl Ruiz já foi definida como um filme único e interminável devido ao notório desprezo do diretor por desfechos narrativos. Mistérios de Lisboa é seu filme mais longo, consistindo numa adaptação de 4h26min como filme e 6h como série televisiva do romance homônimo de Camilo Castelo Branco, composto de uma rede de estórias que se multiplicam ao longo de gerações. No entanto, todas essas estórias na série televisiva e a maioria delas no filme chegam a uma resolução lógica, indicando que a duração prolongada da obra se deve ao gênero escolhido, o folhetim literário combinado com a telenovela, e não ao fato de ser uma obra aberta. Defendo aqui a hipótese de que os procedimentos auto-reflexivos do filme, que questionam o dispositivo fílmico e sua posição hierárquica entre as outras mídias, trazem a estória para perto da realidade e da narrativa histórica ao criar brechas no enredo pelas quais se vislumbram a incompletude e incoerência da vida real. Neste contexto, as constantes transformações intermediais do filme funcionam como “passagens” para o real, pelas quais azulejos, teatros de papelão, desenhos e pinturas ganham vida e vice-versa, subvertendo discretamente a ideia de que a estória possa ter um único fim, ou um final qualquer.