'O Estranho caso de Angélica': afinidade entre Fantástico e Documental
Resumo
Em 2010, Manoel de Oliveira filma "O Estranho Caso de Angélica", projeto datado do início dos anos cinquenta. Nele, o confronto entre o lado mais documental (as sequências onde o protagonista, Isaac, fotografa os trabalhadores da vinha) e as sequências fantásticas (os episódios com o fantasma de Angélica) parece indiciar uma afinidade. Aquela "sombra de semelhança" de que Petrarca falava ao seu amigo Giovanni Boccaccio: "(…) aquele que imita deve proceder de maneira que [o que faça] seja semelhante mas não igual, e que a semelhança não seja a que há entre o original e a cópia, que quanto mais semelhante mais é louvável, mas a que deve haver entre pai e filho, entre os quais, ainda que se dê muita diferença no aspecto, há, contudo, como que uma sombra de semelhança a que os pintores chamam 'aire' (…)" (apud Rodrigues 2003: 5).Um "ar de família" como correlação viva que vem ao nosso encontro e que é sentida como compreensão imediata (não sendo uma evidência definível). No filme, o arrepio que nos chega através da aparição de Angélica parece anunciar algo que ultrapassa essa mesma visão: a eminência do desaparecimento dos trabalhadores da vinha e dos seus gestos, uma perda de ligação entre Homem e Natureza. A afinidade presente – Angélica/cavadores - espelha-se na imensa melancolia de Isaac, a única personagem aparentemente capaz de percepcionar a paisagem, o "aire" que esta relação evoca. Todo o filme é atravessado pelo vislumbre desse indefinível parentesco, pela porosidade decorrida entre mundo sensível e mundo espectral, o permanente entrelaçar de visibilidades/invisibilidades que nos possibilitam o acesso a esse outro espaço-tempo cinematográfico, mais percetível que visível, em que, segundo Manoel de Oliveira, o fantasma da realidade física se revela "mais real, contudo, que a realidade em si mesma" (Baecque e Parsi 1999: 81).