CFP: Revolução e Cinema: 50 anos da Revolução dos Cravos (prazo: 15 Julho 2023)

2023-02-07

1974, um som: “O povo, unido, jamais será vencido”. Este foi um dos gritos mais proeminentes que marcaram a revolução portuguesa, também conhecida como ‘Revolução dos Cravos’ (1974-1975). 2011, uma observação: durante uma entrevista, no seu apartamento, sobre as cooperativas de cinema desse período, o cineasta Fernando Matos Silva mostra-se comovido quando ouve, na televisão, os manifestantes egípcios da Praça Tahrir. Ele pensa ouvir o mesmo grito que o de 1974, o ritmo em três batidas, apenas a língua difere.

Este exemplo é uma ilustração poética das possibilidades de questionamento que este dossier propõe ativar à luz do quinquagésimo aniversário da revolução portuguesa. O objetivo é atualizar as análises históricas e estéticas das ligações que podemos estabelecer quando falamos de cinema e revolução.

Os fenómenos revolucionários podem provocar um cinema que pensa as ruturas históricas e interroga a essência da revolução (Robert-Gonçalves 2018). É o caso, por exemplo, de Bom Povo Português (1981) de Rui Simões, que tenta fazer um trabalho histórico através da montagem cinematográfica. Composto de várias cenas poéticas que sublimam as imagens de arquivo, o filme intervém esteticamente sobre os traços da realidade com um efeito melancólico que faz coincidir a “sensação de verdade e o sentimento de beleza” (Baecque 2008, 61, nossa tradução). Alguns filmes da revolução portuguesa também se inscrevem numa filiação revolucionária, referindo-se a revoluções passadas, tais como a chilena, no início dos anos 70, ou os movimentos de Maio de 1968, na França. Regressar a essas imagens, hoje, é uma maneira de voltar a perguntar o que constitui realmente uma revolução.

Esta matéria interessa a historiadores, realizadores, e investigadores da imagem em movimento. As revoluções têm sido frequentemente filmadas e acompanhadas por imagens. O arquivo visual resultante desse encontro entre cinema e revolução, que o historiador utiliza para (re)construir os caminhos da história, tem sido igualmente ‘reavivado’ numa grande variedade de formas criativas: nos chamados documentários de compilação, nos filmes construídos a partir de imagens recuperadas que encontramos nas redes sociais, ou mesmo, nos filmes de ficção que inserem imagens de arquivo na sua narração.

Se nos últimos anos, no campo da história, foram trabalhadas várias questões sobre a natureza das imagens de arquivo, nos estudos de cinema há ainda muito a fazer em termos da inventariação, preservação e promoção de obras por vezes ignoradas. No caso português, as pesquisas de José Filipe Costa (2002), Michelle Sales (2011), Paulo Cunha (2015), e Mickaël Robert-Gonçalves (2018) permitiram obter uma visão mais precisa do cinema pré-revolucionário e revolucionário. Outras revoluções e movimentos sociais foram analisados por pesquisadores como Raquel Schefer (2015), Ros Gray (2007), Catherine Roudé (2017) ou Mathilde Rouxel (2020).

O uso de imagens de revoluções induz frequentemente ao questionamento sobre a propensão da memória para ‘dar a volta à história’ ou, como Paul Ricoeur escreve, vem lembrar que “os homens do passado tiveram um futuro aberto e deixaram para trás sonhos por realizar, projetos inacabados” (Ricoeur 1998, 27, nossa tradução). Os filmes reativam (ou não) a energia revolucionária e as tensões que dela decorrem nas populações envolvidas, podendo pôr em causa a definição de obra cinematográfica que, na militância, “exige uma extraordinária capacidade de engenho, invenção logística, movimentos táticos e estratégicos” e “leva a repensar o próprio conceito da obra como um conjunto de iniciativas e não como um simples corpus” (Brenez 2013, nossa tradução). As políticas de cinema e os modos de produção que elas ajudam a moldar são uma outra dimensão desta relação tensa e criativa entre cinema e revolução (Costa 2002). O que muda no campo da produção cinematográfica quando os cineastas se vêm a braços com uma revolução? Haverá motivos para escrever uma história política do cinema?

Finalmente, as ligações entre cinema e revolução também podem ser pensadas em torno do destino que é dado a essas imagens. O estudo da circulação das imagens baseia-se na ideia de que, em períodos revolucionários, existem circunstâncias excecionais de difusão e uma formidável convergência estética em diferentes práticas artísticas e culturais. O acontecimento histórico revolucionário pode, então, ser visto como um ponto nodal capaz de fundir ações e arte num único impulso. Um exemplo canónico é o filme La hora de los hornos de Fernando Solana e Octavio Getino (1968), que pode ser analisado como um “filme-ação” (Mestman 2018, 315). Outros filmes acontecem no decorrer da ação revolucionária e problematizam a nossa relação com a imagem que explode no real e se torna, imediatamente, um poderoso arquivo: é o caso, mais recente, de Tripoli Tomorrow (2015) de Florent Marcie, que coloca a câmara dentro da revolução líbia. Filmes como estes reanimam algumas questões: durante a luta, que imagens devem ser feitas? A quem mostrá-las e como?

O início do século XXI está a ser marcado pelo aprofundamento das desigualdades sociais, pelo anacronismo dos regimes autoritários e pelo esgotamento político dos sistemas democráticos. Deve, pois, convidar-nos a analisar os vestígios, mitos, explosões, fracassos e eventuais sucessos das revoluções passadas para, desse modo, podermos melhor compreender a relação entre cinema, arte e política. Este dossier pretende contribuir para a formação de uma “cine-geografia” (Gray e Eshun 2011, 1) das formas de “fazer” cinema e revolução. Para regressar ao exemplo com que abrimos o nosso texto, pretende também lançar uma indagação que nos parece fundamental: como é que as revoluções continuam a existir e a manifestar-se mesmo depois do evento?

Temas sugeridos:

- Modalidades de acompanhamento de uma revolução por imagens: formas e questões estéticas;

- Natureza e dinâmica das revoluções (social, política, científica, etc.) e sua relação com o cinema;

- Circulação e receção do cinema revolucionário;

- História e memória de imagens de revoluções;

- Existência, inventário e valorização dos arquivos das revoluções;

- A revolução nos arquivos televisivos e digitais;

- Utilização e reutilização de imagens de arquivo de revoluções históricas (Revolução Mexicana, Revolução Bolchevique, Maio de 1968, Revolução dos Cravos, etc.) na ficção e no documentário;

- Imagens de revoluções ficcionais no cinema clássico e contemporâneo.

Este dossier temático é coordenado por Mickaël Robert-Gonçalves (Universidade de Coimbra, Portugal), Nicole Brenez (Universidade Sorbonne Nouvelle e Fémis, França), e Bani Khoshnoudi (investigadora independente, EUA).

Mickaël Robert-Gonçalves é doutor em estudos cinematográficos pela Universidade Sorbonne Nouvelle, e membro do CEIS20 (Centro de Estudos Interdisciplinares) da Universidade de Coimbra. Está a preparar a publicação da sua tese, intitulada Cinema Português em Revolução: 1974-1982. É autor de vários artigos sobre cinema português e cinema documental. Professor de cinema em várias universidades, foi também editor, programador, tradutor e produtor entre 2010 e 2016 para a empresa Lowave, e trabalhou durante dez anos como conferencista para atividades educativas na Cinémathèque française. Atualmente, trabalha na Direçao Geral da criação artística do Ministério da Cultura, em França.

Nicole Brenez é professora de estudos cinematográficos na Universidade Sorbonne Nouvelle, diretora do Departamento de Análise e Cultura na Fémis, e programadora das projeções de vanguarda na Cinémathèque française. Com o cineasta Philippe Grandrieux, dirige a coleção de filmes Il se peut que la beauté ait renforcé notre résolution, dedicada aos cineastas revolucionários esquecidos ou negligenciados pela história do cinema. Trabalhou com Chantal Akerman, Jocelyne Saab, Marylène Negro, Jean-Gabriel Périot, Jean-Luc Godard, Jacques Kebadian, Jacques Perconte. Entre as suas últimas publicações destacam-se: Manifestations. Écrits politiques sur le cinéma et autres arts filmiques (De l’Incidence, 2020) e Jean-Luc Godard. Écrits politiques sur le cinéma et autres arts filmiques 2 (De l’Incidence, 2022).

Bani Khoshnoudi é artista. Nasceu em Teerão e imigrou para os Estados Unidos durante a revolução iraniana em 1979. Estudou arquitetura, fotografia e cinema na Universidade do Texas em Austin e continuou os seus estudos dez anos mais tarde, em 2008, no Programa de Estudos Independentes do Museu Whitney de Arte Americana. Os seus filmes, fotografias e instalações, mergulham em camadas de história e experiência em relação às migrações globais, nomadismo e lutas históricas pela liberdade. O seu ensaio documentário The Silent Majority Speaks, sobre o papel das imagens nas várias revoltas iranianas, foi feito clandestinamente em 2010 e depois proibido em 2014 no Líbano, considerado “ofensivo ao regime iraniano”. O seu trabalho tem sido exibido em festivais, museus e centros de arte em todo o mundo (Centre Georges Pompidou, Fondation Cartier, Haus de Kulturen Welt, Fundação Serralves, e Museo Experimental El Eco, no México, entre outros). Em 2022 recebeu o prestigioso Prémio Herb Alpert in the Arts na categoria filme/vídeo.

O prazo para a submissão de artigos completos e originais termina a 15 de Julho de 2023.

Os artigos recebidos serão sujeitos a um processo de seleção (pelos editores) e de revisão cega por pares (por avaliadores externos). Os textos devem ter até 8000 palavras e incluir, em português e inglês: um título, um resumo até 300 palavras, e um máximo de 6 palavras-chave.

Antes de submeter o seu artigo, por favor consulte todas as instruções aqui.

Em caso de dúvida, por favor, contacte: aniki@aim.org.pt

Referências

Baecque, Antoine de. 2008. Histoire et cinema. Paris: Cahiers du cinéma-SCEREN-CNDP.

Brenez, Nicole. 2013. “Edouard de Laurot et (le) Cinéma Engagé. Remarques préalables”, Colóquio internacional ‘Les voies de la révolte: Cinéma, images et révolutions dans les années 1960-1970’. Paris: Musée du Quai Branly.

Costa, José Filipe. 2002. O Cinema ao Poder! A revolução do 25 de Abril e as políticas de cinema entre 1974-1976. Lisboa: Hugin.

Cunha, Paulo. 2015. O Novo Cinema Português: Políticas públicas e modos de produção (1949-1980). Tese de doutoramento. Coimbra: Universidade de Coimbra.

Gray, Ros e Eshun, Kodwo. 2011. “The Militant Image: A Ciné-Geography. Editor’s introduction”. Third Text 25(1): 1-12.

Gray, Ros. 2007. Ambitions of Cinema: Revolution, Event, Screen. Tese de doutoramento. Londres: Goldsmiths College University of London.

Mestman, Mario. 2018. “A Hora dos Fornos e o Cinema Político Italiano por Volta de 1968”. Significação: Revista de Cultura Audiovisual 45(50): 297-317.

Sales, Michelle. 2011. Em Busca de um Novo Cinema Português. Covilhã: Livros LabCom.

Schefer, Raquel. 2015. La Forme-Evénement: le cinéma révolutionnaire mozambicain et le cinéma de libération. Tese de doutoramento. Paris: Université Sorbonne Nouvelle.

Ricoeur, Paul. 1998. “Histoire et mémoire”. In De l’histoire au cinema, organizado por Antoine de Baecque e Christian Delage, 17-28. Bruxelas: Complexe.

Robert-Gonçalves, Mickaël. 2018. “Cinéma Portugais en Révolution 1974-1982: Genèse, enjeux, perspectives”. Tese de doutoramento. Paris: Université Sorbonne Nouvelle.

Roudé, Catherine. 2017. Le cinéma militant à l’heure des collectifs: Slon et Iskra dans la France de l’après 1968. Rennes: Presses Universitaires de Rennes.

Rouxel, Mathilde. 2020. Figures du peuple en lutte. Des pionnières du cinéma arabe aux réalisatrices postrévolutionnaires (Tunisie, Egypte, Liban, 1967-2020). Tese de doutoramento. Paris: Université Sorbonne Nouvelle.