O cinema pela palavra
Lúcia Ramos Monteiro [1]

Pasolini Roma, Cinémathèque Française (Paris, França), 16 de outubro de 2013 a 26 de janeiro de 2014.

Em maio de 1975, na Galleria d’Arte Moderna de Bolonha, Pier Paolo Pasolini participou na performance Intellettuale, de Fabio Mauri (1926-2009). Em uma sala escura, Il vangelo secondo Matteo (O Evangelho Segundo São Mateus, 1964) era projetado sobre a camiseta que o cineasta vestia. Pasolini tinha o rosto contorcido de sofrimento — ele precisava encarar de frente o projetor. Em dezembro daquele ano, Mauri repete a performance: Il vangelo... é projetado sobre a camisa que Pasolini vestia quando morreu, em 2 de novembro de 1975, aos 53 anos.

Não é de hoje que se analisam as implicações da crescente presença do cinema fora da sala cinema, reforçada pela tecnologia digital e a multiplicação de telas e suportes. Seria a morte do cinema, sua ruína [2] ? A ocupação de espaços de exposição pode ser encarada como uma forma de reterritorialização do cinema. Intellettuale é um exemplo relativamente precoce desse fenômeno [3] . Seria de se esperar, portanto, que a obra tivesse destaque na exposição Pasolini Roma, sob a curadoria de Jordi Balló, Alain Bergala e Gianni Borgna [4] . Isso se a mostra se inserisse conceitualmente no escopo do “cinema exposto” [5] . Mas é em um pequeno monitor, na última sala, que quinze registros fotográficos [6] da performance aparecem.

Nos parágrafos a seguir, discuto a presença — ou a ausência — do que se costuma chamar de “cinema exposto” ou “cinema de exposição” em Pasolini Roma. Minha hipótese é de que a chave mais importante para entender a mostra talvez resida no desafio de expor não (apenas) o cinema, mas (sobretudo) a palavra.

 

O cineasta na cidade
Em 2011, Jordi Balló apresentou à Cinemateca Francesa um projeto de exposição sobre a relação entre Pasolini e Roma [7] . Começavam as negociações que levariam à abertura da mostra, em maio de 2013, em Barcelona [8] . A exposição narra de maneira geo-cronológica a segunda metade da vida do intelectual italiano, de sua chegada a Roma, na estação ferroviária Roma Termini, em 1950, à praia de Ostia, onde morreu. É claro que há digressões e flashbacks, a começar pelo que conduz o espectador até Catarsa, no Friuli, de onde Pier Paolo saiu acompanhado da mãe Susanna, numa manhã de janeiro: “Fugi com minha mãe, uma mala e algumas alegrias que se revelaram falsas,/ em um trem vagaroso como um trem de carga”, escreve Pasolini em Poeta dele Ceneri (1966-1967) [9] . O professor, poeta e militante político havia sido expulso do ensino público e do Partido Comunista depois de denúncias de corrupção de menores.

Mapas presentes na exposição localizam marcos de sua vida e de sua cinematografia. O subúrbio romano é ligado à “fase da miséria” (1950-1954): em Ponte Mammolo se situa a casa que ele alugou, “sem telhado nem reboco” [10] ; em Ciampino está o ginásio onde deu aulas em troca de um magro salário. Em outra sala, são localizados o bairro de Pigneto, de Accattone, e as zonas de Torre Angela e EUR [11] , presentes em Uccellacci e uccellini (Gaviões e Passarinhos, 1966).

Mapas, fotografias de rodagem e imagens atuais desses lugares enfatizam que o cinema de Pasolini se concentrava no avesso de Roma, nos anti-monumentos, no que a cidade escondia: a arquitetura fascista, os bairros periféricos, os terrenos baldios. Nos vídeos realizados por Alain Bergala em 2013, exibidos em monitores dispostos em cada uma das salas, planos fixos mostram como estão, hoje em dia, a estação Roma Termini, a Piazza del Popolo, o Pigneto, o EUR, a Via del Corso e a praia de Ostia. Não figuram no repertório a Fontana di Trevi ou o Coliseu, e isso reforça a posição marginal que Pasolini assumia e reivindicava.

Cinema exposto
Nas últimas décadas, diversas instituições culturais dedicaram mostras à imagem em movimento[12] e a alguns cineastas em particular [13] . Talvez nenhuma das exposições dessa última categoria tenha alcançado a mesma popularidade e longevidade que Stanley Kubrick, organizada por Hans-Peter Reichmann em 2004 [14] . Reichmann se apoiou na reconstituição de sets, no fetiche exercido pelos figurinos e objetos de cena de filmes como A Clockwork Orange (Laranja Mecânica, 1971) e The Shining (O Iluminado, 1980). Além disso, ele propôs experiências interativas, possibilitando que o visitante entre no cenário de 2001: A Space Odissey (2001, Uma Odisseia no Espaço, 1968), observando “de dentro” o uso da câmera de projeção frontal, que combina a performance do primeiro plano com um fundo previamente rodado.

A mostra Hitchcock et l’art: coïncidences fatales, realizada por Dominique Païni no Pompidou em 2001, além de apresentar material documental e de reconstituir a cenografia dos sets, expunha um vasto leque de pinturas, desenhos, esculturas e instalações, propondo hipóteses de herança e influência consequentes.

No que se refere à mostra sobre Pasolini, ainda que retratos pintados por ele estejam dispostos em quase todos os ambientes, e que a sala “pequeno museu imaginário” traga pinturas que Pasolini gostaria de possuir [15] , a relação entre cinema e artes plásticas não é satisfatoriamente problematizada, nem tampouco a maneira como expõe a imagem em movimento.

Os inacreditáveis depoimentos sobre sexualidade que Pasolini reúne em Comizi d’amore (1965) são projetados sobre o para-brisa do Fiat Millecento — o cineasta o havia usado em sua viagem pela Itália durante as filmagens. A cena final de Roma, città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945), de Rossellini, é exibida em uma pequena tela, inserida dentro de uma maquete do Cinema Nuovo de Roma, onde Pasolini o vira. Não há, porém, uma confrontação direta com a sequência final de Mamma Roma (1962) em que Anna Magnani corre até sua casa, uma referência ao filme de Rossellini (Imagens 1 e 2) [16] .

Description: rome ville ouverte Description: mammaroma
Imagem 1 (esq.): Roma, città aperta (Roberto Rossellini, 1945) | © Excelsa Film
Imagem 2 (dir.): Mamma Roma (Pier Paolo Pasolini, 1962) | © Arco Film

 

Palavra exposta
O fetiche de Pasolini Roma reside menos na presença do automóvel ou na maquete do Cinema Nuovo do que na palavra escrita por ele, de próprio punho. As cartas, o manuscrito datilografado de Ragazzi di vita e o caderno em que traduzia poemas revelam a minúcia de sua escrita. A moviola Prevost está em cena menos como objeto independente do que como suporte para o texto em que Pasolini defende La Ricotta (1963) — o instrumento teria sido levado ao tribunal durante o julgamento do filme.

Quando realiza Accattone, em 1961, aos 39 anos, Pasolini já tinha publicado poesia, romance e teatro. Pasolini Roma o apresenta assim: comoum escritor que fez filmes. Desse modo, Pasolini Roma pode ser encarada menos como uma exposição de cinema do que como uma exposição sobre um escritor [17] .

A escolha da palavra como centro ressalta o lugar fundamental da palavra no fazer cinema de Pasolini. Se seus requintados dispositivos óticos [18] não são explorados a fundo, fica visível o respeito pela palavra, e o lugar fundamental que o texto tem em seu cinema. E não apenas porque uma longa reflexão por escrito precedia a filmagem propriamente dita — mesmo para Pasolini, partidário da improvisação.

No curta La Ricotta, que começa com um texto, o personagem do realizador, interpretado por Orson Welles, tira do livro que tem às mãos a citação com que conclui sua entrevista a um jornalista: “Sou uma força do passado./ Só na tradição repousa meu amor./ Venho das ruínas, das igrejas,/ dos retábulos, dos burgos/ abandonados nos sopés dos Apeninos ou dos pré-Alpes,/ onde os irmãos viveram.” Na capa, lê-se o título, Mamma Roma, e o nome do autor, Pier Paolo Pasolini. Em seguida, o jornalista encontra Stracci (Mario Cipriani), um dos atores que devem padecer na cruz, e se encanta com seu cachorro. “Como ele se chama?”, pergunta o repórter. “Infame”, responde Stracci. “Uma beleza”, continua o jornalista. “Só lhe falta a palavra.” Se a conversa parece indicar que a humanidade é a condição do discurso, a sequência do filme e, da filmografia de Pasolini, colocará em cena animais falantes: cachorro (no próprio La Ricotta), aves (em Uccellacci e uccellini)...

Para Pasolini, o tornar-se cineasta se acompanha da investigação sobre a oralidade. Antes de trabalhar com cinema, Pasolini já pesquisava diferentes registros linguísticos, com pronunciado interesse pelo falar popular. Ele fizera um dicionário de romanesco-italiano (incluído no manuscrito de Ragazzi di vita) e manifestara o desejo de que o friulano pudesse ter uma literatura autônoma. Nesse aspecto, e para concluir, retomo as considerações de Pasolini contidas em “O cinema e a língua oral” (Pasolini, 1982 [1969]), em que ele questiona a preponderância da palavra escrita como objeto de apreciações estéticas. Ele reporta-se a Homero e expressa a utopia de ouvir a voz dos viajantes declamando seus poemas.

Ao colocar a palavra no centro da exposição, Pasolini Roma reforça a posição política marginal de Pasolini, um escritor consagrado que decide explorar o potencial literário da oralidade, que filma o avesso de Roma — e do mundo —, que joga luz sobre o que se prefere esconder.

[Aniki vol. 1, n.º 1 (2014): 131-136 | ISSN 2183-1750 | doi:10.14591/aniki.v1n1.56]

 

BIBLIOGRAFIA

Aumont, Jacques. 2012. Que reste-t-il du cinéma? Paris: Vrin.
Baudry, Jean-Louis. 1975. “Le Dispositif.” Communications 23, Psychanalyse et Cinéma: 56-72.
Bellour, Raymond. 2012. La Querelle des dispositifs. Cinéma – installation, exposition. Paris: P.O.L.
Deleuze, Gilles, e Félix Guattari. 2008 (1980). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução coordenada por Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34.
Gaudreault, André, e Philippe Marion. 2013. La fin du cinéma?, Un média en crise à l’ère du numérique. Paris: Armand Colin.
Mauri, Fabio. 2007. “Attraversando lo specchio dell’ideologia.” Reset 100: 87-90.
Mauri, Fabio. 2008. Scritti in Mostra. Milão: Bompiani.
Païni, Dominique. 2002. Le temps exposé: le cinéma de la salle au musée. Paris: Cahiers du Cinéma.
Pasolini, Pier Paolo. 1982 (1969). “O cinema e a língua oral.” In O empirismo herege, 220-222. Traduzido por Miguel Serras Pereira. Lisboa: Assírio & Alvim.
Pasolini Roma. 2013. Paris: Skira Flammarion e La Cinémathèque Française (catálogo de exposição, sob a curadoria de Jordi Balló, Alain Bergala e Gianni Borgna).
Senaldi, Marco. 2012. “The Director who Became the Screen. Fabio Mauri, Pier Paolo Pasolini, and Intellettuale.” In Cinéma, critique des images, editado por Claudia d’Alonzo e Ken Slock, 269-274. Pasian di Prato: Campanotto Editore.

 

[1] Doutorada em estudos cinematográficos pela Universidade de São Paulo (Brasil) e pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris 3 (França).

[2] Publicações recentes de Jacques Aumont (2012) e Raymond Bellour (2012) fornecem argumentos nessa direção, enquanto André Gaudreault e Philippe Marion (2013) relativizam a questão, historicizando-a. Certo é que o dispositivo de exibição convencional, tal como foi teorizado nomeadamente por Jean-Louis Baudry (1975, 56-72), encontra-se, muitas vezes, desterritorializado. Faço referência aos conceitos de desterritorialização e reterritorialização tais como foram propostos por Deleuze e Guattari. Certos críticos e teóricos preferem estudar esse fenômeno sob a perspectiva da migração ou da expansão. Ao adotar o vocabulário de Deleuze e Guattari como faço aqui, pretendo colocar ênfase no aspecto movediço e instável desse fenômeno, e na disputa de territórios que ele envolve. É como se ao cinema coubesse a propriedade de adotar espaços distintos, o que vai de encontro, evidentemente, com a concepção de Baudry, que descreve um dispositivo estável, muito mais idealizado do que historicamente real (Deleuze e Guattari 2008 [1980]).

[3] Mauri não foi o inaugurador do gesto artístico de projetar filmes sobre objetos e corpos. Antes dele, Man Ray e Robert Whitman haviam obtido notoriedade em experiências de projeções ao vivo. No momento de Intellettuale, o próprio Mauri já tinha realizado Oscuramento, performance em três partes que data de abril de 1975, em que, no final, uma versão em 16mm de Még kér a nép (Salmo Vermelho, 1972), de Miklós Jancsó, era projetada sobre o corpo do cineasta, em uma sala semi-obscura (Mauri 2007 e 2008, e Senaldi 2012, 269-274).

[4] Realizada em conjunto pelo Centre de Cultura Contemporània de Barcelona, pela Cinemateca Francesa, pelo Palazzo delle Esposizioni, de Roma, e pelo Martin-Gropius-Bau, de Berlim.

[5] Durante a retrospectiva que o MoMA PS1 dedicou a Pasolini em 2012, o registro audiovisual da performance de Mauri foi exibido, além de trabalhos de artistas contemporâneos. Assim, o programa “live” do MoMA PS1 continha o vídeo-ensaio Le Ceneri di Pasolini (2009), de Alfredo Jaar, a leitura pela atriz Kate Valk, do Wooster Group, do texto A Harlot’s Progress, de Paul Chan, narrando a influência artística exercida por Pasolini, uma performance multimídia de Barbara Hammer diretamente inspirada por Intellettuale, Witness: Palestine (2012) e uma performance de Lovett/Codagnone e Emi Fontana com Ninetto Davoli, ator que protagonizou diversos filmes de Pasolini e talvez seu mais importante amor, Tribute to PPP: “We Know” (2012).

[6] As fotografias são de autoria de Antonio Masotti.

[7] Na época, Balló era diretor de exposições do Centre de Cultura Contemporània de Barcelona (CCCB). O tema havia sido abordado na mostra Pasolini e Roma. Margini e confini, que Enzo Siciliano e Federica Pirani realizaram no Museo di Roma en Trastevere, em 2005, por ocasião do trigésimo aniversário da morte do cineasta.

[8] Pasolini Roma fica em cartaz até 26 de janeiro em Paris e, em 2014, irá à Itália (Roma) e à Alemanha (Berlim).

[9] O texto prossegue: “Chegamos em Roma,/ ajudados por um tio doce,/ que me deu um pouco de seu sangue:/ eu vivia como um condenado à morte/ sempre tendo este pensamento como um fardo / – desonra, desemprego, miséria”. (Minha tradução.)

[10] Foi ali que Pasolini escreveu seu primeiro romance, Ragazzi di vita (1955).

[11] A última morada de Pasolini ficava no EUR (Esposizione Universale Roma). O bairro havia sido construído em 1942, por ocasião da Exposição Universal, que deveria se realizar em comemoração ao vigésimo aniversário da marcha dos fascistas em Roma, em 1922.

[12] É o caso de exposições como Passages de l’image (1989) e Le Mouvement des images (2006), realizadas no Pompidou, Movimentos improváveis, no Centro Cultural Banco do Brasil-CCBB (2003) e Cinema Sim, do Itaú Cultural (2008), apenas para citar alguns exemplos.

[13] Hitchcock, Kubrick, Almodóvar e Godard estiveram, assim, no centro de exposições importantes.

[14] A mostra foi inaugurada no Deutsches Filmmuseum e segue em cartaz até hoje, tendo passado por Berlim, Roma, Zurique, Melbourne, Paris e São Paulo.

[15] Entre as obras estão duas naturezas mortas de Giorgio Morandi, uma tela de Ottone Rosai (La Badiaccia, 1938) e Paesaggio del Friuli de Giuseppe Zigaina (1954).

[16] Os trechos de Mamma Roma exibidos são vistos através de uma janela, em câmera lenta, enquanto, no áudio, Magnani e Pasolini discutem. O diálogo é precioso, pois a atriz explicita seu método, demarcando-se dos atores não-profissionais elencados para Accattone (1961). À diferença deles, ela lê o roteiro e constrói uma compreensão própria da personagem que interpreta. Por isso, não gosta quando Pasolini a interrompe para dar instruções no meio de um plano. No entanto, a sobreposição desse conteúdo sonoro às imagens de Mamma Roma na garupa da motocicleta conduzida pelo filho não dá suficientemente valor e espaço às imagens do filme.

[17] Nesse sentido, duas mostras anteriores do CCCB, sobre a ligação de escritores com cidades, funcionariam como inspiração: El Dublin de James Joyce (1995) e Cosmopolis. Borges y Buenos Aires (2002).

[18] Por exemplo em Il vangelo..., Medea (Medeia, a Feiticeira do Amor, 1969) e Salò o le 120 giornate di Sodoma (Saló ou 120 Dias de Sodoma, 1975).