Cinema material: a abstração luminosa
Margarida Medeiros [1]
Film, Solar – Galeria de Arte Cinemática (Vila do Conde, Portugal), 29 de junho a 1 de setembro de 2013.
O que traz o trabalho artesanal com a película cinematográfica para o espaço da galeria, até há poucas décadas dominada pela pintura, escultura, fotografia? O que significa para o cineasta sair da sala de projeção tradicional, a ‘caixa negra’ do visionamento cinematográfico? De onde vem o interesse pela matéria do próprio cinema, o filme, a bobine, o projetor, o tempo, a duração, o suporte?
Estas e outras questões surgem no âmbito do movimento mais recente, sobre tudo nos últimos quinze anos, ao longo dos quais artistas como Douglas Gordon, Tacita Dean, Bill Morrison, Alexandre Estrela, Pedro Costa, Thierry Kuntzel, Michael Snow, entre muitos outros, se debruçam sobre essa materialidade cinematográfica (e fotográfica) e a apresentam no contexto da galeria e do museu. A exposição de trabalhos neste âmbito pela galeria Solar, associada ao Festival de Curtas-Metragens de Vila do Conde, tem permitido um acesso mais direccionado a este âmbito de intervenção artística.
A primeira questão que se coloca a este género, em termos gerais, é o facto de permitirem a porosidade entre o cinema, a galeria e o museu. Se a ideia de ‘instalar cinema’ na galeria/museu tem aberto novas possibilidades de visionamento do cinema, sobretudo documental, por outro, a apropriação dos processos cinematográficos por parte de artistas contemporâneos introduz novas questões e temáticas.
É o que se constata com a exposição Film, que no passado Verão de 2013 reuniu artistas de diversas proveniências e estéticas na Galeria Solar. Incluía artistas que trabalham a película no sentido de exploração da sua materialidade e sensorialidade (caso de Peter Tscherkassky), que reflectem sobre a sua natureza perecível (Bill Morrison), que a usam para criar cenários fantásticos a partir da banalidade (João Maria Gusmão e Pedro Paiva), que o desconstroem, como as instalações The Hustler, de João Louro, ou ... uma paisagem confusa e indistinta de Daniel Barroca.
Podemos distinguir neste grupo de trabalhos vários trajectos. Para Bill Morrison, por exemplo, as suas espectaculares instalações de filmes realizados com found footage, ocupando toda uma parede e apresentadas sequencialmente, trabalham diferentes aspectos da relação do cinema com o tempo. Por um lado, ao trabalhar com imagens de arquivos, os seus filmes colocam o espectador no tempo desses mesmos filmes, convocando os aspectos ontológicos do cinema mais relacionados com a ideia de presença e de realismo; por outro, em projeções como Light is Calling, vemos surgir diante de nós uma outra figura da temporalidade, a que ataca a matéria do cinema, destruindo a película e transformando-a numa figura arruinada. De certa forma, esta é uma questão que atravessa muito do trabalho realizado com película que o tempo estragou, devido à sua natureza fotoquímica (ao contrário do suporte digital, cuja base electrónica se encontra menos sujeita às influências do ambiente). De algum modo, ao trabalhar com esses ‘arquivos mortos’, revitalizando-os no espaço artístico, Bill Morrison, como outros seus contemporâneos, reencena uma temática do século XIX: a identificação com o objecto arruinado. Se no início do século XIX são os fragmentos de pedra ou os torsos decepados que excitam a imaginação e devolvem ao sujeito uma espécie de espelho distorcido e crítico, nas primeiras décadas do século XXI, com a revolução digital, as ruínas que interessam são a matéria da imagem analógica (fotografia e cinema), indicando um mesmo movimento na apropriação de objectos perdidos e deteriorados a partir do qual se procura pensar a identidade contemporânea, a condição efémera do sujeito e das suas imagens.
Este parece ser também, em parte, o sentido da obra de Peter Tscherkassky, o artista austríaco que trabalha, em Motion Picture – La Sortie des Ouvries de l’Usine Lumière à Lyon (1984-2008), sobre a natureza material da película. Projetando a primeira imagem do filme dos irmãos Lumière sobre a projeção de película virgem de 16mm, Tscherkassky cria uma sequência de luzes e de sombras que chamam a atenção para essa natureza “matérica” do cinema. Mas neste último caso, o que mais sobressai é uma certa nostalgia pelo que se considera a natureza ‘material’ da película cinematográfica analógica. Autores que trabalham e trabalharam a arqueologia dos media têm insistido sobre a ilusão ‘imaterial’ da tecnologia digital e as fantasias que interagem com as revoluções tecnológicas — Friedrich Kittler, Oliver Grau, Peter Weibel, Teresa Cruz, são alguns dos autores (de entre os clássicos e os mais contemporâneos) que podemos referenciar no contexto da recepção dos media e dos seus suportes e que reflectiram sobre a ansiedade provocada pelos mesmos. Face ao digital, o cinema analógico (tal como a fotografia) surge com a espessura que os pintores também opunham à fotografia aquando da sua invenção e esforço para ser reconhecida como uma ‘arte’: a fotografia não teria ‘espessura’, não possuiria a materialidade da pintura. O fundamental é pois compreender o que poderá estar em jogo nesta transformação que opõe duas fantasias concorrentes: o desejo de eternidade proporcionado pela técnica e a fantasia de precariedade e corporeidade investida pela estética.
Uma mesma reflexão sobre a matéria do cinema feito de luz e sombras atravessa a projeção montada no Teatro Municipal, Never a Foot Too Far, Even (2011) de Daïchi Saïto, cineasta japonês. Sobrepondo imagens a partir de duas bobines diferentes, constrói um objecto fílmico que assim se aproxima da pintura, na sua mistura de cores e sombras, ao mesmo tempo que torna o filme original (um antigo filme de Kung-Fu) numa abstração.
A instalação de Daniel Barroca, por seu lado, ... uma paisagem confusa e indistinta (2009), parte de um filme de propaganda militar nazi que o artista destrói, anulando, ao mesmo tempo, o factor manipulativo do filme de propaganda. As imagens que vemos perderam forma e figura, aproveitando a cave da galeria para intensificar o carácter ‘dissoluto’ que apresentam e que, nesta ‘forma’, contrariam, definitivamente, o esquema do cinema ‘ilusão’, do cinema narrativo, ou ainda do cinema de propaganda. Esta desconstrução da narrativa fílmica é também o objecto da instalação que aí realizou João Louro, ao retirar dois diálogos do filme The Hustler de Robert Rossen (1961), sobre o jogo. Esta é uma constante nos trabalhos sobre o cinema por parte de artistas visuais, e que tem o seu paradigma em 24 hours Psycho de Douglas Gordon (2011): o trabalho sobre o filme analógico é frequentemente uma interrogação sobre o fim do cinema narrativo (com todas as suas diferenças correntes, industriais e hollywoodescas, mas também todas as ‘contra-correntes’, do neo-realismo à Nouvelle Vague) e sobre as possibilidades de comunicação, ou seja, sobre as possibilidades filosóficas do cinema, hoje. E essa é também uma das razões pelas quais, nos últimos dez anos, os Estudos Fílmicos vieram a integrar, como os Estudos da Fotografia, as questões filosóficas a partir de dentro. O encontro do cinema com a filosofia é também o encontro da arte (desde a arte conceptual) com o campo do discurso sobre o sujeito e sobre o mundo — campo histórico da filosofia por excelência. Questão, aliás, há muito presente nos filmes de Godard, e em particular em JLG/JLG (1994).
Ainda um o trabalho de Gustav Deutsch — Monday, August 28th, 1939, New York, 10 p.m. (3rd episode of the feature film Shirley — Visions of Reality) (2013) — e um conjunto extremamente interessante de 6 curtas-metragens em película de João Maria Gusmão e Pedro Paiva completam esta colectiva em torno do ‘filme’. No primeiro caso, o autor instala, em grande dimensão, o 3º episódio de Shirley, glosando o visionamento repetido, por parte da rapariga assistente de uma sala, de um filme de William Wyler. Com este filme/instalação, Deutsch interpela na reprodutibilidade do cinema a capacidade que o mesmo tem, na tradição narrativa, para capturar emocionalmente o espectador. Na personagem da ‘arrumadora de lugares’ que recita o dialogo entre mãe e filho (Humphrey Bogart enquanto jovem), Deutsch remete o espectador para a envolvência do sujeito na sala escura, ao mesmo tempo que dela se distancia colocando a projeção em plano de fundo e a sala, como a arrumadora, no primeiro plano. Destruindo o espectáculo, fica a fantasmagoria do cinema e das suas narrativas e é o luto da perda desta experiência que o autor convoca. Por seu lado, a dupla João Maria Gusmão e Pedro Paiva usa o cinema analógico numa perspectiva intimista e próxima. Contrariando a limpidez do digital, as curtas dos dois autores apresentam pequenas histórias de nada: a percepção de um insecto, um homem negro e cego a comer uma manga, filmando em grande proximidade (Solar, o cego a comer uma papaia, 2011), os movimentos de uma raia (Sonho de uma raia, 2011). A aproximação a este ‘nada’ conduz a uma concentração dos filmes na percepção do movimento e do tempo ao longo do qual se desenrolam as imagens, criando o espaço para a reflexão sobre a representação ela mesma, mas também sobre a forma como ela nos pode apresentar o mundo, à medida que condiciona a sua percepção.
Apesar de, por vezes, ser notória uma intensa esteticização da película (como já referimos), esteticização que por vezes pode tornar-se um fim em si mesmo (como parece ser o caso da obra de Peter Tscherkassky), o que todos estes artistas, como muitos outros, escolhem como objecto principal, ao tomarem a matéria do cinema como objecto, ou ao produzirem instalações a partir de filmes, é a necessidade de pensar o lugar que a imagem cinematográfica ocupa na cultura contemporânea, interrogando a sua história ao mesmo tempo que o seu futuro. O interesse de galerias e museus pelo cinema, no contexto actual, revela também a urgência em incluir o trabalho com formas que tradicionalmente lhe eram exteriores e cuja apresentação sofria de uma espécie de dissociatividade (as artes de museu e galeria versus as artes do espectáculo, como o cinema e o teatro), ultrapassando esses limites e fronteiras entre formas diferentes de representar a realidade. O cinema, analógico ou digital, o filme, enfim, são hoje uma espécie de pincel, ou de mármore, a partir do qual a (i)materialidade dos dias de hoje pode ser pensada. Talvez o contexto em que filmes são hoje mostrados nos museus, ou instalações realizadas a partir de filmes, ou ainda obras que tomam o filme analógico ou digital como matéria, não seja afinal tão diferente, nos seus efeitos, do de uma sala de cinema. O que muda é o que se faz com o filme. O que muda é o facto de o filme ser o objecto mesmo da pesquisa, que inclui o sujeito que a faz e os seus fantasmas.
[Aniki vol. 1, n.º 1 (2014): 127-130 | ISSN 2183-1750 | doi:10.14591/aniki.v1n1.47]