Cinema e censura em Portugal [1]
Ana Bela Morais [2]

Lauro António. 2001. Cinema e censura em Portugal. 2ª ed. Lisboa: Biblioteca Museu República e Resistência. (1ª edição: Ed. Arcádia, 1978)

A presente obra do realizador, crítico de cinema, ensaísta, professor e até antigo dirigente cineclubista Lauro António, devido à sua relevância e pioneirismo é considerada uma obra de referência para os investigadores da censura ao cinema em Portugal durante o Estado Novo.

Como lembra o autor no prefácio a esta segunda edição, a primeira, de 1978 esgotou muito rapidamente o que tornava urgente a nova edição que, embora corrigida e aumentada, mantém as ideias e a estrutura da original:

De resto, o essencial da obra cumpre-se na recolha de uma documentação absolutamente notável para se analisar a forma como a censura se processava no nosso País, durante o período da ditadura de Salazar e Marcelo Caetano, pelo que essa actualidade e importância se mantêm intactas, se possível mais úteis e pertinentes do que nessa época, dado o progressivo apagamento da memória individual e colectiva.

Por certo a licenciatura em História do autor muito deve ter contribuído para a sua preocupação em fundamentar objetiva e claramente os seus comentários. A própria organização interna da obra traduz tal preocupação: para além dos Anexos, em que consta correspondência inédita entre diversas distribuidoras e exibidoras de filmes portugueses e a Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos mas, sobretudo, reproduções dos pareceres e relatórios dos censores, inclui um capítulo dedicado a “Documentação” no qual comenta e transcreve os pareceres dos censores que constam em diversos processos de censura, explicando muito bem as dificuldades que teve na sua consulta e a seleção da informação que optou por fazer. Ainda no capítulo “Documentação” é notória a sua preocupação teórica e cuidada em fundamentar e revelar o conteúdo de certos processos que lhe pareceram mais interessantes e aprofundados, porque mais reveladores da mentalidade dos censores: é o caso do filme Arroz amargo (1949), de Giuseppe de Santis. O mesmo sucede no capítulo “O caso ‘Grande, grande era a cidade’”, no qual descreve minuciosamente todo o longo processo de censura a que foi submetido este filme, realizado por si e por Rogério Ceitil, recorrendo sempre a fontes históricas.

De facto, ao longo de toda a obra, mesmo quando não há alusão explícita a este tipo de fontes, elas são uma presença constante e legitimadora dos argumentos do autor, bem como as recorrentes imagens de cenas cortadas que poderiam originar uma montagem idêntica à elaborada por Manuel Mozos, no filme Censura: alguns cortes (1999). Uma das imagens mais curiosas e reveladoras aparece logo na página 11: a fotografia da atriz Yvonne De Carlo (1922-2007) com um risco a atravessar-lhe o peito. Em nota de rodapé, Lauro António esclarece que “a fotografia tem, no verso, a seguinte instrução: ‘A base é pelo traço vermelho para não se verem os seios.’” [3]

Apesar de fazer uma análise à censura ao cinema durante o Estado Novo português, Cinema e censura em Portugal não deixa de ser uma introdução ao tema que — embora explique os trâmites processuais da censura ao cinema durante o período referido, percorra a legislação existente, refira as mudanças que se verificaram na constituição e ideário da Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos, sobretudo na passagem do Salazarismo para o Marcelismo —, não deixa de carecer de um aprofundamento do que expõe. Ou seja, alude aos temas censurados e proibidos, sublinhando a arbitrariedade da censura, mas não faz um estudo aprofundado sobre esses temas, exemplificando as suas afirmações com exemplos de processos de filmes proibidos que surgem aleatoriamente, sem qualquer critério aparente — ver capítulo “Do proibido”. Podemos assim perguntar: porquê os processos desses filmes e não outros? Foram esses os mais relevantes? O mesmo poderia ser questionado no capítulo seguinte, “Documentação”.

Esta ausência de critério explícito na seleção dos processos fílmicos — excetuando alguns casos, como o do filme Arroz amargo, de Giuseppe de Santis (1949), sobre o qual Lauro António refere: “É particularmente longo e exemplar sob certos pontos de vista, o processo dedicado a Arroz amargo. (…)” (p. 78) – pode talvez explicar-se por duas ordens de razões. Uma delas pode dever-se a uma escolha deliberada do autor no sentido de reforçar a “urgência” de divulgar um tema que ainda não estava estudado e que é fundamental para ajudar a perceber a mentalidade dos censores, em particular, e a ideologia do Estado Novo subjacente àquela época da história de Portugal, em geral. Nesse sentido, logo no capítulo introdutório, “Da censura”, Lauro António, embora não explique qual a estrutura formal da obra, introduz de forma brilhante o modo como a censura condicionou a mentalidade portuguesa até aos nossos dias, problematizando o próprio conceito.

Uma segunda explicação está relacionada com limitações completamente alheias à própria vontade do autor, que se relacionam com a dificuldade em aceder aos processos de censura aos filmes. Como Lauro António explica, quando consultou os arquivos da Direcção-Geral dos Espectáculos em 1975, entre outras considerações sobre os processos que reproduz, refere:

Entre os milhares de dossiers de possível consulta escolhemos os de filmes ‘proibidos’ integralmente e, entre estes, só conseguimos manusear os que se encontravam na altura na repartição da Direcção-Geral dos Espectáculos, Palácio Foz, Lisboa. Os restantes processos haviam sido removidos para arrecadações de difícil acesso e consulta. (p. 74)

De facto, os documentos da Censura que se encontravam no Palácio Foz, antiga sede do SPN (Secretariado de Propaganda Nacional)/SNI (Secretariado Nacional de Informação e Turismo)/SEIT (Secretaria de Estado de Informação e Turismo), só em 2006 foram depositados na Torre do Tombo; ou seja, só a partir dessa data foram postos à disposição dos investigadores. Este acontecimento torna ainda mais preciosa a existência desta obra, pois a censura ao cinema em Portugal é um tema praticamente desconhecido na historiografia do cinema, como demonstra, aliás, o Dictionnaire de la Censure au Cinéma, coordenado por Jean-Luc Douin (2001), que dedica ao caso português, um dos mais interessantes, umas breves linhas.

Excetuando a presente obra de Lauro António, só o livro de Cândido Azevedo, A Censura de Salazar e Marcelo Caetano — Imprensa, teatro, cinema, radiodifusão, livro (1999), faz alguma referência ao tema da censura ao cinema em Portugal, bem como os comentários e memórias de alguns outros realizadores, assim como certas passagens de estudos sobre o cinema — como a obra coordenada por Luís Reis Torgal (2000). Desde 2010 o grupo de investigação “A censura ao teatro e ao cinema antes, durante e depois do Estado Novo”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, tem contribuído para o estudo deste tema, do qual resultou para além da publicação de diversos artigos em revistas nacionais e internacionais e de um Congresso Internacional, o livro Censura, nunca mais! A censura ao teatro e ao cinema no Estado Novo (Cabrera, 2013) [4] .

Porém, não se trata apenas da questão da censura ao cinema que tem sido pouco estudada, mas de todas as outras formas de censura no território português durante o referido período. Ou seja, é fundamental realizar estudos sistemáticos sobre a censura ao cinema português, em particular, e sobre a censura em Portugal, em geral, pois só assim se pode conhecer de forma crítica o processo complexo da repressão do Estado Novo, que lhe anda associada de forma inextrincável. A presente obra de Lauro António deu um importantíssimo passo nesse sentido e abriu caminho a uma investigação que começa agora a ser desenvolvida de forma mais sistemática. O facto de o livro terminar sem uma conclusão explícita, mas antes com reproduções de documentos vários relacionados com a atuação prática da censura, parece significar isso mesmo: novos capítulos podem ser acrescentados à investigação sobre a censura ao cinema em Portugal que vigorou durante o Estado Novo.

[Aniki vol. 1, n.º 1 (2014): 104-107 | ISSN 2183-1750 | doi:10.14591/aniki.v1n1.31]

 

BIBLIOGRAFIA

Areal, Leonor. 2011. Cinema Português. Um país imaginado. Vols. I e II. Lisboa: Edições 70.
Azevedo, Cândido de. 1999. A censura de Salazar e Marcello Caetano – Imprensa, teatro, cinema, radiodifusão, livro. Lisboa: Editorial Caminho.
Cabrera, Ana, ed. 2013. Censura nunca mais! A censura ao teatro e ao cinema no Estado Novo. Lisboa: Alêtheia.
Cunha, Paulo. 2010. “A censura e o Novo Cinema Português.” In Outros combates pela história, coordenado por Maria Manuela Tavares Ribeiro, 537-551. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.
Douin, Jean-Luc. 2001. Dictionnaire de la censure au cinéma. Images interdites. Paris: Quadrige /PUF.
Piçarra, Maria do Carmo. 2013. Azuis ultramarinos: propaganda colonial nas actualidades filmadas do Estado Novo e censura a três filmes de autor. Tese de doutoramento, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Torgal, Luís Reis, coord. 2000. O cinema sob o olhar de Salazar. Lisboa: Círculo de Leitores.


[1] O texto foi corrigido pelas normas do novo acordo ortográfico ao contrário da vontade da autora.

[2] Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Portugal).

[3] A fotografia (entre outras) esteve patente na exposição do Museu República e Resistência — editor da presente obra — em 2001, sobre a temática “Cinema e censura em Portugal”, exposição que foi reexibida em 2012 e na qual foi palestrante convidado o Professor Luís Reis Torgal.

[4] Alguns dos investigadores deste grupo tinham já efetuado pesquisa, ainda que de uma forma não sistemática, sobre a censura ao cinema em Portugal: é o caso de Paulo Cunha (2010), Leonor Areal (2011), Maria do Carmo Piçarra (2013).