Materialidades no Cinema Português: estéticas, práticas e técnicas (prazo: 15 de janeiro de 2021)
Nas últimas décadas, a consolidação do paradigma dos estudos de cultura material (material culture studies), no campo antropológico, encorajou um interesse particular na dimensão material das atividades humanas (Lemonnier 2012). Por outro lado, a viragem digital (digital turn) nos estudos dos média tem chamado a atenção dos investigadores para uma série de temáticas ligadas às técnicas e práticas da experiência cinematográfica (Elsaesser 2016). Estes dois eixos de reflexão podem convergir um no outro e oferecer um contributo historiográfico e teórico significativo para os estudos de cinema.
É nesse sentido que caminha o presente dossiê temático, que propõe olhar para os objetos e as ações materiais que suportam a produção e receção cinematográficas, com o propósito de evidenciar a sua agencialidade (agency) e analisar a complexa interação entre materiais, técnicas e saberes que encontramos no centro dos filmes e de cada época da história do cinema. Visto desta perspetiva, o cinema português representa um caso de particular interesse (Cunha 2018; Sampaio 2017; Torgal 2001; Vidal e Veloso 2016). Ancorado em práticas artesanais mais fortes, quando comparado a outras cinematografias, o cinema português atribuiu desde sempre uma importância central à materialidade e tem sido muitas vezes pensado como um ‘cinema materialista’, apesar de os estudos existentes terem privilegiado a dimensão do autor (Pierotti 2018). Com efeito, os ofícios ‘inter-artísticos’ têm sido frequentemente colocados de parte, em benefício de uma conceção que vê o realizador como o único e exclusivo responsável do filme. Pelo contrário, definições como as de Peter Kubelka de criação cinematográfica como ‘a tailor’s work in progress’ (Korossi 2016) devolvem o merecido espaço a estes ofícios, graças aos quais se molda a pedra em escultura ou se corta tecido sem forma, transformando-o em traje, e se arruma os sons para a criação de vozes e silêncios…
Ancorando o objeto de estudo num cinema de tipo artesanal, o que nos interessa é, justamente, compreender que partes das implicações e contextualizações da obra, tanto no seu tempo de produção como na sua vida social, se incluem como acontecimentos ou fenómenos estéticos dentro do próprio filme, de forma a transforma-lo em algo novo. A ideia de ‘modo de relação’, como conformador do significado do cinema, torna-se relevante no estudo da materialidade, ao definir claramente a experiência estética fílmica a partir das dialéticas que constituem as diferentes poéticas do fazer cinematográfico (Bruno 2014).
O estudo da materialidade do cinema empenha-se em observar os vários elementos que constroem o objeto ‘filme’ com o intuito de valorizar a génese dos processos criativos aí implicados (Salles de Almeida 2008). Já em 1989, o realizador António Reis lançava a ideia de uma ‘estética dos materiais’ para destacar significados novos e profundos a partir da matéria bruta da qual são feitos os filmes (Lobo e Moutinho 1997). A partir desta ideia, é possível delinear as genealogias e as projeções futuras desta estética, identificando os seus múltiplos vestígios, não somente nas experiências ligadas ao Novo Cinema e à Escola Portuguesa, mas em toda a história material (e dos materiais) do cinema português (Pereira 2016; Cucinotta 2018; Liz e Owen 2020).
Ao olhar para o cinema português de um ponto de vista material, permitimos uma viragem na análise onde se descobrem a complexidade material da obra e das suas circunstâncias criativas, as relações fílmicas que o espectador deve interpretar, e as condições materiais da paisagem físico-política onde atuam (Rampazzo Gambarato 2010). Em particular, ao longo do Novo Cinema, em Portugal, deparamos com a ideia latente de que foi necessário gerar um corte significativo e, de certa forma, abrupto, para se poder criar uma nova linha teórica a audiovisual que nada tivesse que ver com o passado (Araújo 2016; Areal 2011; Monteiro 2000). A existir, em que terá consistido esse corte? Que (novas) formas e materiais terão surgido ou sido incentivadas?
Este enquadramento metodológico tem estado no centro do Grupo de Trabalho ‘Cinema e materialidades’ daAssociação dos Investigadores da Imagem em Movimento (AIM). Será também objeto da conferência internacional Materialidade e Processos Criativos no Cinema Português, a realizar na Universidade de Florença, em outubro de 2020. É no seguimento destes trabalhos, bem como da viragem materialista (materiality turn) que se tem vindo a afirmar nos estudos de cinema e nos estudos dos média, que o presente dossiê se insere. O nosso objetivo é reunir uma seleção de textos originais e teoricamente pertinentes que contemplem as multíplices formas de aproximação a esta temática no campo dos estudos do cinema português.
Convidamos, pois, à submissão de artigos completos e inéditos, sobre os seguintes tópicos, a título não exaustivo:
- Estética dos materiais e sua presença no espaço fílmico;
- Crítica genética e génese do filme: da produção às práticas materiais;
- Novas fontes e documentos para o estudo da materialidade;
- As tecnologias sonoras: desenho de som, vozes, ruídos, músicas;
- As tecnologias visuais: película, fotografia, iluminação, novos suportes e instrumentos;
- A materialidade através do vídeo-ensaio;
- Saberes e identidade de género: materialidade, artes e técnicas.
- A cultura material da recepção: a materialidade dos espaços e dispositivos de exibição, relação com o espectador, materialidades em contextos analógicos e digitais.
Este Dossiê Temático é coordenado por Caterina Cucinotta (Universidade Nova de Lisboa) e Federico Pierotti (Universidade de Florença).
Caterina Cucinotta é investigadora da FCT de pós-doutoramento com o projeto ‘Figurinos e textura espacial: Design e arte no cinema português dos últimos 50 anos’, integrado no IHC da FCSH – NOVA de Lisboa. Mestre em Estudos Artísticos (DAMS), vertente Cinema pela Faculdade de Letras da Universidade de Palermo (licenciatura, 2003) e de Bolonha (mestrado, 2007), doutorada pela FCSH em Ciências da Comunicação vertente Cinema (2015). É autora de Viagem ao Cinema através do seu Vestuário (2018), e membro coordenador do GT ‘Cinema e Materialidades’ da AIM. Publicou artigos em revistas nacionais e internacionais.
Federico Pierotti é professor associado de Cinema e Cultura Visual na Universidade de Florença. Publicou os volumes La Seduzione dello Spettro. Storia e cultura del colore nel cinema (Le Mani, 2012), Un’ Archeologia del Colore nel Cinema Italiano. Dal Technicolor ad Antonioni (ETS, 2016), Diorama Lusitano. Il cinema portoghese come archeologia dello sguardo (Mimesis, 2018), e editou (com Federico Vitella) o volume Il Cinema dello Sguardo. Dai Lumière a Matrix (Marsilio, 2019). Publicou também diversos artigos sobre o cinema italiano e português. Faz parte do Comité Científico das revistas L'avventura. International Journal of Italian Film and Media Landscapes e Immagine. Note di storia del cinema. Foi associate research scholar na Italian Academy à Columbia University de New York (2016) e professor convidado na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne (2020) e na Université Toulouse - Jean Jaurès (2017).
O prazo para submeter os artigos termina a 15 de janeiro de 2021.
Os artigos recebidos serão sujeitos a um processo de seleção (pelos editores) e revisão cega por pares (por avaliadores externos). Os textos devem ter entre 6000 a 8000 palavras e incluir, em português e inglês: um título; um resumo até 300 palavras; e um máximo de 6 palavras-chave.
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Referências bibliográficas:
ARAÚJO, Nelson. 2016. Cinema Português. Interseções estéticas nas décadas de ’60 a ’80 do século XX. Lisboa:Edições 70.
AREAL, Leonor. 2011. Ficções do Real no Cinema Português. Um país imaginado. Lisboa: Edições 70.
BRUNO, Giuliana. 2014. Surface: Matters of aesthetics, materiality, and media. Chicago: University of Chicago Press.
CUCINOTTA, Caterina. 2018. Viagem ao Cinema através do seu Vestuário. Percursos em filmes portugueses de etnoficção. Covilhã: Labcom.
CUNHA, Paulo. 2018. Uma Nova História do Novo Cinema Português. Lisboa: Outro Modo Cooperativa Cultural.
ELSAESSER, Thomas. 2016. Film History as Media Archaeology: Tracking digital cinema, Amsterdão: Amsterdam University Press.
KOROSSI, Georgia. 2016. “The Materiality of Film: Peter Kubelka”, BFI British Film Institute, https://www.bfi.org.uk/news/materiality-film-peter-kubelka.
LEMONNIER, Pierre. 2012. Mundane Objects: Materiality and non-verbal communication. Walnut Creek, CA: Left Coast Press.
LIZ, Mariana e OWEN, Hilary (coord.). 2020. Women’s Cinema in Contemporary Portugal. London: Bloomsbury.
LOBO, Maria Graça e MOUTINHO, Anabela (coord.). 1997. António Reis e Margarida Cordeiro. A poesia da terra. Faro: Cineclube de Faro.
PEREIRA, Ana Catarina. 2016. A Mulher Cineasta: Da arte pela arte a uma estética da diferenciação. Covilhã: LabCom.
PIEROTTI, Federico. 2018. Diorama Lusitano. Il cinema portoghese come archeologia dello sguardo. Udine-Milano: Mimesis.
RAMPAZZO GAMBARATO, Renira. 2010. “Methodology for Film Analysis: The role of objects in films”, Revista Fronteiras. Estudos midiáticos, 12(2), pp. 105-115.
SALLES DE ALMEIDA, Cecília. 2008. Crítica Genética: Fundamento dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. São Paulo: Educ.
SAMPAIO, Sofia (coord.). 2017. Viagens, Olhares e Imagens. Lisboa: Cinemateca Portuguesa–Museu do Cinema.
TORGAL, Luís Reis (coord.). 2001. O Cinema Sob o Olhar de Salazar. Círculo de Leitores: Lisboa.
VIDAL, Frédéric, e VELOSO, Luísa (coord.). 2016. O Trabalho no Ecrã. Memórias e identidades sociais através do cinema. Lisboa: Edições 70.