Revolução e cinema: o exemplo português
Vitor Zan e Beatriz Rodovalho [1]
Revolução e cinema: o exemplo português – colóquio internacional, Paris, França, 10-12 de Março de 2014.
Quarenta anos após a Revolução dos Cravos, o colóquio internacional Revolução e cinema: o exemplo português, organizado por Raquel Schefer, Mickaël Robert-Gonçalves e Benjamin Léon [2], reuniu mais de trinta pesquisadores e cineastas para (re)pensar “a representação cinematográfica do acontecimento desde 1974 até a actualidade.” [3] Num contexto europeu de crise, em que correntes conservadoras ocupam de forma crescente o poder e os espíritos, qual é o espaço do cinema revolucionário, seja ele o cinema da revolução ou o cinema sobre a revolução? Como propõem os organizadores, “voltar a essa herança poderá, talvez, fazer do presente a força inaugural de uma história por vir.”
Estruturado em eixos temáticos em torno do questionamento do cinema português, da descolonização, da história e da memória da revolução, o colóquio promoveu também três projeções de filmes. La Nuit du Coup d’État (2001), de Ginette Lavigne, foi apresentado em presença de Otelo Saraiva de Carvalho. José Filipe Costa exibiu seu documentário Linha Vermelha (2011), e o cinema de Alberto Seixas Santos foi representado pelo filme O Mal (1999). Uma sessão de curtas-metragens exibiu filmes feitos no interior do processo revolucionário; Destruição, de Fernando Calhau, e O Parto, de José Celso Martinez e Celso Luccas (ambos de 1975), e vídeos contemporâneos; Untitled de Ângela Ferreira (1998), Errata de Paula Albuquerque (2001), e Goodbye, de Ana Barroso (2010).
Além de intervenções especiais de José Filipe Costa e de José Manuel Costa, diretor da Cinemateca Portuguesa, o colóquio recebeu a historiadora Raquel Varela [4], que discutiu a conjuntura histórica da Revolução dos Cravos e os eventos do 25 de Abril em diferentes sectores sociais, inclusive o papel da mulher no processo revolucionário.
Diante de um cenário de recalque e supressão da memória do Estado Novo, a conferência reclamou a urgência do resgate da memória revolucionária e da memória colonial. O movimento duplo de uma revolução que retorna no cinema e de um retorno a esse cinema da revolução explicita a necessidade de reescritura da História e das histórias portuguesas, assim como a revisão do cinema político e das ideias revolucionárias do fim do século XX.
Estética e política
A conferência inaugural foi proferida por José Moure [5] e situou o campo em que o simpósio se insere; aquele que investiga as relações entre estética e política. O autor apontou para as simultâneas importância e insuficiência de um pensamento bastante difundido e textualmente integrado à prática cinematográfica, segundo o qual deve-se “fazer politicamente os filmes políticos,” mobilizando portanto seu conteúdo e sua forma. Pautado por teorias de Jacques Rancière, Moure refletiu sobre a eficiência do cinema político e defendeu a concepção da política no cinema como “prática de excepção,” distanciando-se de abordagens que a consideram parte integrante de todo e qualquer filme. Para Moure, como desenvolve Rancière [6] (2000), a política no cinema é observada em sua finalidade de tornar visível o que não se vê e audível o que não se ouve, e em sua capacidade de promover a passagem de um “mundo sensível” a um outro, cujos valores, tolerâncias, histórias e causalidades seriam distintos.
Lá e cá
Um dos aspectos importantes do colóquio foi a inserção da Revolução Portuguesa e do processo de descolonização subsequente no amplo contexto revolucionário (e contrarrevolucionário) do período. Jorge la Ferla, da Universidad del Cine e da Universidad de Buenos Aires, construiu um panorama cinematográfico e histórico que relaciona o contexto português com o da América Latina, onde a ideia de “golpe de estado” evoca outros significados. La Ferla tentou apontar diferentes discursos entre o documentário contemporâneo que se volta aos acontecimentos da época e o cinema militante de cineastas como Glauber Rocha, Raymundo Gleyzer, Fernando Solanas e Octavio Getino.
Na década de 1970, transformando Portugal e as ex-colónias africanas em território simbólico por meio do cinema, diversos cineastas estrangeiros transitaram por esse espaço possível de uma revolução em processo, promessa de uma nova ordem por vir. Ros Gray, da Royal College of Art, discutiu esse movimento do cinema político que transcende cinemas nacionais e estabelece uma “cine-geografia.” Segundo ela, os cineastas dessa “militância itinerante” apropriaram-se do cinema como meio de descolonização e de intervenção na realidade social, expressando um novo imaginário político e sua potencialidade revolucionária. Como exemplo desse movimento, a autora analisou Scenes From the Class Struggle in Portugal (Robert Kramer e Philip Spinelli, 1977). Gray descreveu principalmente a actividade em Moçambique dos brasileiros José Celso Martinez e de Celso Luccas com o filme Vinte e Cinco (1975) e o trabalho da artista Ângela Ferreira.
O cinema nas instalações de Ferreira foi analisado por Ana Balona de Oliveira, da Universidade de Lisboa, como um meio para investigar as conquistas e as utopias frustradas das revoluções. Através da “câmara política” e do “cinema underground,” ela apresentou as relações complexas no trabalho de Ferreira entre geografias e temporalidades que instituem novos lugares de memória e de história, como se vê também em Untitled. No vídeo, a artista realiza uma coreografia aeróbica diante do estádio nacional de Moçambique. A memória do espaço e dos festivais de ginástica da Mocidade Portuguesa é evocada pela imagem sem foco e pela coreografia moderna que rompe com a ordem das coreografias da organização juvenil.
A memória colonial, ou sua ausência, também foi objecto de outra curta-metragem: Errata, de Paula Albuquerque. Como em uma exibição familiar, a voz da cineasta tenta comentar velhas imagens de filmes domésticos. Por meio da perda da memória íntima que eles carregavam, ela coloca em questão a amnésia da vida privada nas colónias.

Imagem 1: Errata (Paula Albuquerque, 2001): memórias íntimas perdidas entre o “mar português” e as “ondas africanas.” / © Paula Albuquerque.
Catarina Laranjeiro, da Universidade de Coimbra, também explorou fragmentos de imagens e reminiscências pessoais em sua comunicação sobre a memória da Guerra de Libertação da Guiné Bissau. Ela investiga a construção da história e da identidade nacionais e confronta o processo de esquecimento e de rememoração a partir de fotografias, entre as lacunas daqueles que testemunham e a mudez da imagens fixas.
Outra discussão questionou a posição do cineasta e do investigador diante de imagens coloniais. Mirian Tavares, da Universidade do Algarve, problematizou a alteridade: falar do outro não seria uma outra forma de colonização? Essas questões foram, de certo modo, abordadas por Maria-Benedita Basto, da Université Paris 4, que analisou particularmente Os demónios de Alcácer-Quibir (José Fonseca e Costa, 1976). Basto sustenta que a descolonização é um ato político, epistemológico e um ato de cultura. Quem escreve a História? Quem escreve a história das colónias? Raquel Schefer interrogou igualmente a necessidade de legitimação da produção académica que passa por uma perspectiva eurocêntrica, além do uso de teorias europeias para se pensar o cinema africano. A descolonização, nesse sentido, deve ser, para o pesquisador e para o artista, uma verdadeira mudança de perspectiva e uma tomada de posição diante de seu objecto.
O filme Vinte e Cinco, por sua vez, regista a mobilização e a agitação social na independência moçambicana. Trata-se de um filme para o nascimento de uma nação e de um cinema. O Parto, capturando a marca da promessa revolucionária portuguesa, documenta outro nascimento, outra libertação. Anunciando que “a velha Era já ERA,” ele faz um breve exame crítico do Estado Novo. No final, a imagem do recém-nascido que acabou de dar seu primeiro grito é mostrada na mesa de montagem, enquanto o rolo desfila pela moviola. O Parto ilustra, assim, a apropriação do cinema como instrumento da revolução, assumindo, no entanto, a fragilidade dessa ordem nascente. Ele também convoca a necessidade de “quebrar barreiras” e expandir esse impulso de libertação para além de Portugal.
A aspiração do cinema militante a representar política e cinematograficamente o povo está presente nos filmes de Kramer e Spinelli e de Celso e Luccas. Essa questão atravessou diversas comunicações do colóquio, como a de Ana Soares, da Universidade do Algarve, que analisou o SAAL no documentário, e a de Renato Guimarães, da Université Paris 1. Outro realizador em exílio e deslocamento, Glauber Rocha filma a reação popular em torno da Revolução dos Cravos. Participante do filme colectivo As Armas e o Povo (1974-75), Rocha carrega o microfone e entrevista moradores de um bairro da periferia lisboeta no primeiro de Maio. Segundo Guimarães, com seu método retórico, o cineasta subverte a relação entre repórter e entrevistado, questionando a presença do povo e do cineasta no processo social e revolucionário.
Outros cinemas
O colóquio concedeu também espaço a “outros cinemas” — o cinema queer e o cinema amador. Fernando Curopos, da Université Paris 4, analisou a paródia trash Fatucha Superstar (João Paulo Ferreira, 1976), em que Nossa Senhora de Fátima é transformada em uma heroína travesti que “perverte e dessacraliza” o imaginário católico que sustentou o Estado Novo. Fatucha revela, em efeito, os limites da liberdade clamada pela Revolução e mostra como ela não foi feita para as minorias.
José Alexandre Cardoso Marques, da Universidade de Coimbra, apresentou a tentativa de constituição de um arquivo de imagens amadoras da emigração portuguesa e defendeu uma história e uma memória da Revolução dos Cravos vistas através da autorrepresentação. O arquivo em questão busca digitalizar as imagens colectadas, gravadas em VHS entre os anos 1980 e 1990. A partir delas, é possível identificar gestos comuns ao cinema doméstico do deslocamento, cujo registo se situa entre a migração, o exílio e a viagem.
Identificando os filmes de família como objetos de consumo privado e recusando-os como possíveis objetos políticos, Amarante Abramovici, por sua vez, analisou o cinema amador da revolução. A investigadora valoriza um cinema amador de rua, de produção doméstica e local. Por meio dele, ela defende a desmontagem de discursos historiográficos dominantes que representam o PREC como um tempo de caos e incerteza.
Os espectros de Torre Bela
Torre Bela (Thomas Harlan, 1975), tanto por seu valor histórico e cinematográfico quanto simbólico, foi um filme constantemente citado no colóquio. Linha Vermelha (2011) retorna ao documentário de Harlan que se tornou um monumento do cinema português, como escreve Sonia Kerfa, e que encarna o espírito da revolução. A pesquisadora, da Université Lyon 2, analisou os dois filmes. Assim como desenvolve Costa em seu documentário, Kerfa afirma que o acontecimento e o filme sobre o acontecimento se confundem — “a ocupação faz o filme e o filme faz a ocupação.” No entanto, a autora critica essa “instrumentalização do real num momento de euforia,” chamando de impostura certas manipulações operadas pelo documentário e evidenciadas por Linha Vermelha. Como observou Jacques Lemière, porém, trata-se apenas de mise-en-scène documental. Trata-se também de conceber o cinema revolucionário como objecto complexo e transformador possível do real.

Imagem 2: Linha Vermelha (José Filipe Costa, 2011): Torre Bela e a construção da memória do acontecimento e da imagem revolucionária | © José Filipe Costa
Para expandir o contexto histórico da realização de Torre Bela, Costa apresentou documentos sonoros captados em 1975 pelo técnico de som da equipe de Harlan. O fundo, pertencente à Cinemateca Portuguesa, constitui uma paisagem sonora inexplorada. Costa também analisou a percepção dos eventos de Torre Bela e da ocupação da propriedade privada na dramaturgia audiovisual portuguesa, que contraria o que exprime o documentário de Harlan.
Que revolução?
Muitas comunicações, refletindo o espírito de diversos filmes, examinaram o fracasso e o desencantamento com o processo revolucionário. Entre “questionamento e desilusão,” como colocou Ana Vera, da Université Lyon 2, o cinema português deste período reformula o imaginário nacional. A presença fantasmagórica das promessas e das esperanças revolucionárias não cumpridas persegue igualmente o cinema português pós-revolucionário. É o caso, por exemplo, das análises de Que farei eu com esta espada? (João César Monteiro, 1975). Identificando o filme como produtor de “imagens-clarão” que antecipam o futuro-passado português, como escreve Maria do Carmo Piçarra, da Universidade Nova de Lisboa, a questão que se impõe atualmente é acerca do legado do Estado Novo e da revolução. Esta pergunta surge também em Natureza Morta – Visages d’une dictature (2005), de Susana de Sousa Dias, em que as imagens do passado interpelam no presente a herança revolucionária.
Outras comunicações sobre filmes contemporâneos também evocaram esse intervalo e suas temporalidades impuras. A análise de Ossos (Pedro Costa, 1997), realizada por Louis Daubresse, da Université Paris 3, problematizou uma memória histórica feita de traumas, recalques, “silêncios e aporias,” assim como “a sobrevivência de um sistema de perseguição sociopolítica.” Tabu (Miguel Gomes, 2012) e A Última vez que vi Macau (João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, 2012), por exemplo, analisados por Mathias Lavin (Université Paris 8) e António Preto (Universidade Lusófona do Porto), participam de um “processo memorial em curso.” Neles, o retorno ao passado colonial provoca uma reflexão sobre as consequências da Revolução, a construção “de um conhecimento histórico e a criação de uma memória subjectiva.”

Imagem 3: 48 (Susana de Sousa Dias, 2009) e seu cruzamento de olhares ressignificados através do tempo | © Susana de Sousa Dias
48
Na mesa dedicada à obra de Susana de Sousa Dias [7], o debate concentrou-se principalmente sobre 48 (2009), que, como um panteão cinematográfico consagrado aos resistentes anónimos, propõe-se a ressignificar um álbum de fotografias de identidade de presos políticos. As apresentações mostraram que a reapropriação das imagens operada pela diretora perturba e desconstrói as intenções daqueles que as produziram. Contra a miniaturização presente nos arquivos originais, erige-se a ampliação cinematográfica, que parece se esforçar para passar da identificação militarista ao reconhecimento humano e político, ampliando também, portanto, a importância histórica atribuída a esses indivíduos até então deslembrados. As intervenções analisaram o dispositivo cinematográfico de Sousa Dias, que pretende reanimar o inanimado, dar a ver o que não se via, dar voz àquele que não a tinha, deslocar o que está estanque.
Da revolução ao arquivo
Contrariamente à abordagem ontológica adoptada por José Moure, José Manuel Costa interessou-se sobretudo pela postura metodológica que se pode assumir atualmente diante dos filmes. Qual o impacto da Revolução na cinematografia portuguesa? Haveria propriamente um “cinema de Abril?” Suas indagações almejam demonstrar que se por um lado a periodização histórica tem sua utilidade, uma vez que a Revolução representou de facto diversas transformações tangíveis, por outro ela é redutora, pois dissimula a complexidade e as nuances do processo. Ele desafia essa simplificação ao alegar que, apesar de rupturas, há inúmeras continuidades entre o cinema que antecede e aquele sucede a Revolução.
Além de pleitear por uma historiografia capaz de restituir a complexidade dos eventos, a inversão de perspectiva proposta pelo director da cinemateca corresponde à negação do cinema como um eco degradado da história, e a sua afirmação como um de seus agentes.
[Aniki vol. 1, n.º 2 (2014): 385-392 | ISSN 2183-1750 | doi:10.14591/aniki.v1n2.85]
[2] Doutorandos em Estudos Cinematográficos na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, França.
[3] Apresentação do colóquio escrita por Mickaël Robert-Gonçalves e Raquel Schefer, disponível com o programa em http://www.univ-paris3.fr/revolution-et-cinema-l-exemple-portugais255518.kjsp .
[4] Autora de História do Povo na Revolução Portuguesa 1974-75. Lisboa: Bertrand, 2014.
[5] Professor do departamento de cinema e audiovisual da Université Paris I e autor de uma série de livros, entre os quais: Vers une esthétique du vide au cinéma, L’Harmattan, 1997; Michelangelo Antonioni, cinéaste de l’évidement,L’Harmattan, 2001; Le Cinéma : l’art d’une civilisation (1920-1960), Flammarion, 2011.
[6] Cf. Rancière, Jacques. 2000. Le Partage du sensible. Paris: La Fabrique
[7] Composta por Javiera Medina (Université Paris 8), Chiara Magnante (Università di Bologna), Flávia Arruda Rodrigues (Universidade Estácio de Sá) e Beatriz Rodovalho (Université Paris 3).