Cinema no Estado Novo
Manuel Deniz Silva [1]

Patrícia Vieira. 2011. Cinema no Estado Novo: a encenação do regime. Lisboa: Edições Colibri. 175 pp. ISBN 978-989-689-156-5.

Não sendo propriamente um terreno inexplorado, o cinema produzido no período inicial do Estado Novo ainda não beneficiou da atenção e da análise crítica que merece. Os trabalhos pioneiros da equipa coordenada por Luís Reis Torgal (Torgal 2000) e a investigação de Maria do Carmo Piçarra sobre a produção de atualidades e documentários pelo SPN (Piçarra 2006 e 2011), permitiram já balizar historicamente esse território, mas falta ainda uma visão de conjunto que nos permita compreender melhor a filmografia que mais proximamente esteve ligada ao aparelho cultural da ditadura. Foi o que Patrícia Vieira se propôs no presente livro, mapeando de forma sistemática os temas presentes no corpus de longas-metragens de ficção realizadas entre os anos 30 e 50 em Portugal e procurando estabelecer a sua filiação com a ideologia do regime.

A obra organiza-se em sete capítulos, que abordam cada um dos temas definidos pela autora a partir de uma obra específica ou de um conjunto de filmes: a propaganda política (A Revolução de Maio, 1936), a representação dos heróis nos filmes históricos (Bocage, 1936; Camões, 1946), a defesa dos ideais da ruralidade (A Canção da Terra, 1938; Ala-Arriba!, 1942; Lobos da Serra, 1942; Ribatejo,1949; A Cruz de Ferro, 1968) a importância da religião (Fátima, terra de Fé, 1943), as representações de género (A Severa, 1931; Gado Bravo, 1934; Aldeia da Roupa Branca, 1939; Fado, História d’uma cantadeira, 1947; Sangue Toureiro, 1958), e a questão colonial, esta última ocupando os dois capítulos finais, respetivamente centrados em Feitiço do Império (1940) e Chaimite (1953). Através destas análises, Patrícia Vieira vai desenhando um conjunto de figuras ideais do “mundo fantasiado” pelo salazarismo, povoado de cidadãos respeitadores da autoridade e das hierarquias, de heróis e poetas que cantam o amor da Nação, de camponeses alegres e submissos, de gente honesta, crente e temente a Deus, de donas de casa bondosas e humildes, de colonizadores valentes e civilizadores; um universo em que os comportamentos que se afastam ou subvertem as normas definidas pelo discurso de Salazar são considerados como desvios antipatriotas, porque contrários à ordem natural das coisas e perigosos para a coesão da comunidade nacional.

Desde logo, um dos aspetos mais salientes da cartografia proposta pela autora é a ausência do conjunto de filmes a que se convencionou chamar de “comédias à portuguesa”, habitualmente consideradas como o género mais representativo do período inicial do Estado Novo. Uma opção justificada, na introdução, pelo facto de ter sido esse precisamente o cinema até aqui mais estudado e pela escolha em tratar a filmografia selecionada através de áreas temáticas e não de géneros. Não deixa, no entanto, de ser interessante essa redução do corpus, com repercussões evidentes na própria pesquisa, uma vez que a autora deixa propositadamente de lado a produção do período salazarista mais explicitamente vocacionada para o entretenimento, e por isso também a mais ambígua, complexa e impura, marcada pela contaminação de outras formas de espetáculo, como o Teatro de Revista, e pela sua relação privilegiada com as indústrias da cultura, em particular a rádio e a indústria fonográfica. O livro concentra-se assim deliberadamente numa filmografia mais homogénea, selecionando os filmes mais claramente associados às intenções ideológicas do regime.

Cada capítulo do livro repete o mesmo dispositivo analítico, começando pela apresentação do tema a partir da referência aos discursos de Salazar, seguida de uma análise do enredo dos filmes e terminando com um conjunto de reflexões mais gerais sobre a ideologia do Estado Novo, em diálogo com diversos autores da filosofia ocidental, numa constelação eclética onde se cruzam Aristóteles, Kant, Hegel, Freud, Winnicott, Schmidt, Husserl, Adorno, Kracauer, Derrida ou Homi Bhabha. É nestes desenvolvimentos teóricos, de importância e pertinência desigual, que Patrícia Vieira revela por vezes uma intuição e um poder interpretativo assinaláveis, como o demonstram a elaborada análise psicanalítica do imperialismo português a partir de uma leitura da teoria freudiana do “fetiche” aplicada ao projeto colonial do Estado Novo (Cap. 6).

A primeira questão importante que o livro levanta é assim metodológica e prende-se com o modo de seleção do corpus e com o caráter sistemático do dispositivo de análise que a autora coloca em funcionamento. Para perceber melhor a razão destas estratégias, e o seu impacto na leitura dos filmes que o livro nos propõe, é importante tentar perceber a origem e o sentido deste inquérito a partir da forma como surge justificado pela autora nas primeiras páginas da introdução. Patrícia Vieira começa por evocar uma cena famosa: Salazar, convidado por António Ferro a assistir a uma projeção do filme A Revolução de Maio, confessou ter gostado “demasiado” do filme, que o impediu de dormir e de trabalhar convenientemente no dia seguinte. A autora parte desta “cena originária” para colocar uma série de perguntas sobre a relação que o regime estabeleceu com o cinema, às quais o livro procura dar resposta. A rejeição do cinema por Salazar é interpretada não como uma “reacção provinciana à sétima arte”, mas como um reconhecimento “pela negativa” do seu poder, o que conduz a uma primeira interrogação: “Teria a produção cinematográfica dos anos trinta a cinquenta, no seu conjunto, sido utilizada como meio de persuadir a opinião pública a aderir aos princípios do salazarismo, a reconhecer as vantagens do regime, e a moldar o seu comportamento de acordo com os valores do Estado Novo?” (p. 17). Esta pergunta, e a própria dramaturgia da utilização da “cena originária”, revelam desde logo um projeto construído a partir de preocupações teóricas gerais, um questionamento que parte de cima (de Salazar e da sua relação com a propaganda) e não de baixo (dos filmes propriamente ditos). Esta questão inicial é no entanto rapidamente afastada, uma vez que são escassos os exemplos de filmes de ficção da iniciativa do próprio regime ou explicitamente de propaganda política (na verdade apenas se podem considerar dois exemplos nesta categoria, A Revolução de Maio e o Feitiço do Império, ambos de António Lopes Ribeiro) e que a quase totalidade das longas-metragens deste período foram produzidos por empresas privadas. No entanto, Patrícia Vieira lembra que esse cinema não foi “independente do poder político” (p. 18), condicionado que estava por uma legislação protecionista, pelos apoios e subsídios estatais, por estratégias de promoção internacional e de atribuição de prémios, e sobretudo pela apertada rede de controlo dos serviços de censura, o que fez com que os filmes acabassem por “se coadunar com os valores do regime”, respeitando o que Luís Reis Torgal denominou de “ideologia indirecta ou contextual” (p. 19). Por outras palavras, o projeto do livro passa a ser uma análise da forma como estes filmes se enquadraram “na mundividência salazarista” e contribuíram para a reprodução dos “postulados do salazarismo”, “através dos cenários, da escolha de personagens e da própria trama narrativa”. A forma como a autora apresenta esta relação é, no entanto, pouco explícita e surge fundada num “pressuposto”: o de “que existe uma confluência entre a imagem do país representada nestas obras e o retrato do governo de Salazar elaborado pelos ideólogos do regime” (pp. 19-20).

A aparente evidência desse ponto de partida esconde no entanto um posicionamento metodológico que nos parece discutível, com consequências importantes para a leitura ideológica dos filmes e para a sua participação no debate mais amplo sobre a relação entre arte e política. A autora apresenta na introdução duas formas opostas de abordar os objetos culturais produzidos nos contextos políticos autoritários. A primeira é ilustrada pela posição de Siegfried Kracauer, que defendeu que qualquer filme produzido durante o nazismo podia ser considerado como um filme de propaganda, mesmo os que versavam temas não políticos, uma vez que todos eram veículos de difusão da ideologia do regime. A posição contrária seria a assumida pelos defensores da “arte pela arte”, aqueles que defendem que mesmo as obras explicitamente políticas mantêm uma autonomia irredutível enquanto objetos estéticos, e que estes devem ser analisados antes de mais na sua dimensão formal e a partir dos códigos próprios ao domínio artístico. Para evitar tanto Cila como Caríbdis, a autora socorre-se de Marc Ferro, retomando a sua proposta de uma “contra-análise da sociedade” a partir das representações cinematográficas, atenta não apenas ao “conteúdo explícito” das obras mas igualmente aos seus “temas latentes” ou evitados, aos seus lapsos e ocultações (p. 22). Patrícia Vieira define o seu projeto, assim, como uma tentativa de identificar as “coincidências e divergências entre a linguagem cinematográfica e os discursos intelectuais e sócio-políticos que dominaram este período” (p. 21, sublinhado nosso). Mas é precisamente aqui, na forma como são tratados tanto a “linguagem cinematográfica” como os “discursos intelectuais”, que o inquérito de Patrícia Vieira se revela problemático.

Por um lado, o livro confunde sistematicamente o regime do Estado Novo com a retórica do seu líder. A ditadura não nos é apresentada enquanto realidade histórica, enquanto processo político e social atravessado por contradições e negociações complexas, mas sim como uma lógica unicamente discursiva, um conjunto de enunciados invariavelmente provenientes do centro do poder. Apesar da autora considerar que o Estado Novo não conseguiu produzir uma ideologia unificada, mas antes um “bricabraque de doutrinas e práticas”, e que o regime se caracterizou pelos paradoxos de um governo “no qual se digladiam múltiplos agentes (...) que disputam a sua parcela de influência política” (p. 21), é unicamente a palavra de Salazar, omnipresente ao longo do livro, que parece conduzir e determinar todos os processos de significação. As citações dos discursos do ditador, organizadas de forma temática e muitas vezes cruzando intervenções de períodos historicamente muito distintos, são prolongadas em extensas notas de rodapé que acumulam variações redundantes e tornam a leitura do texto desnecessariamente pesada. Sem dúvida que a retórica dos discursos de Salazar constituiu um elemento fundamental na construção política do Estado Novo e na forma como este se pensou a si próprio, mas a redução da realidade do próprio regime à arquitetura ideológica do seu líder reconduz-nos a uma visão monolítica e personalizada do regime que os estudos mais recentes sobre o Estado Novo têm vindo a desconstruir e que não favorece a compreensão das suas dinâmicas e tensões internas [2] .

Por outro lado, a análise da linguagem cinematográfica que o livro nos propõe confina-se, com raríssimas exceções, ao estudo do enredo dos filmes, ou seja, à história que eles nos contam. Considerar o conteúdo de determinado filme a partir do seu enredo é, de certa forma, supor que o que ele nos diz se reduz à sua dimensão narrativa, seja ela explícita ou implícita. Ora o cinema não se limita a reproduzir uma determinada trama narrativa, mas dá-nos a ver e a ouvir uma composição particular de imagens e de sons. O cinema não nos conta uma história, mostra-nos uma determinada realidade, seja ela ficcional ou documental. É verdade que o cinema sonoro narrativo tem um forte caráter verbocêntrico e logocêntrico, o que levou Michel Chion a propor a designação “audio-logo-visual” para reforçar a importância decisiva e a autonomia que por vezes a palavra assume, não se “dissolvendo” nem na imagem nem na banda sonora. Mas na sua procura dos “postulados do salazarismo”, a autora tende a isolar apenas o logos, deixando praticamente de lado a análise detalhada das dimensões visual e sonora que caracterizam propriamente o cinema. Peguemos apenas num exemplo que mostra bem, a nosso ver, os limites deste dispositivo. A trama do filme Fado, História de uma Cantadeira explica-nos que o talento da personagem interpretada por Amália apenas se justifica no bairro em que nasceu e que o seu progressivo afastamento de Alfama retirou autenticidade e valor à sua arte. O filme pode assim ser lido como uma crítica feroz ao mundo do espetáculo, em que a arte se corrompe pelo dinheiro e pela fama, anátema confirmado pelo final feliz que marca o regresso da cantora às suas origens. Porém, se é isso que nos é contado, não é necessariamente isso que nos é mostrado naquilo que vemos e ouvimos. A narrativa explícita da condenação do mundo do espetáculo e dos seus malefícios é feita precisamente através da celebração visual e auditiva da sedução desse mesmo universo. Porque o que o filme propõe ao seu público não é a autenticidade moral de Alfama mas sim o consumo fascinado da artificialidade de Amália enquanto estrela-simulacro no ecrã.

As duas operações que marcam a metodologia do livro — a redução do regime à palavra do ditador e a redução do filme ao seu enredo — participam de uma mesma opção estratégica. É através dessa redução a texto de duas realidades muito diferentes que a autora consegue estabelecer o jogo de equivalências entre “discursos intelectuais” e “linguagem cinematográfica” que estrutura a sua investigação. No entanto, nesse jogo de espelhos que Patrícia Vieira nos propõe, perdemos de vista tanto a complexidade do período histórico do Estado Novo como o que faz a especificidade estética do cinema e a complexidade da sua relação com a realidade em que se insere. Apesar de constituir uma útil cartografia das temáticas fundamentais do cinema estadonovista, o livro pressupõe uma relação de causa e efeito entre o político e o fílmico que fica largamente por demonstrar e por pensar. Sair da oposição entre uma visão da arte enquanto manipulação ideológica e o seu reverso estetizante, implica um outro tipo de atenção às condições de produção, de circulação e de receção dos objetos artísticos, que este inquérito textual, baseado exclusivamente em literatura secundária, deixa completamente de lado. Porque foram feitos estes filmes, por quem e para quem? Como foram construídos os sentidos destas produções pelos agentes envolvidos, no cruzamento de projetos estéticos e políticos nem sempre coincidentes, e como foram recebidos, apropriados e mediados pelos diferentes públicos a que se destinavam? Até que ponto não foram estes filmes um resultado da fabricação pelos próprios agentes cinematográficos de ficções políticas próprias dentro do universo ideológico da ditadura? De que forma podemos posicionar estas obras no processo bem mais vasto de mercantilização dos consumos culturais que marcou a primeira metade do século XX em Portugal? E como é que elas integraram ou se diferenciaram dos modelos cinematográficos internacionais, que desde sempre marcaram a imaginação cinéfila nacional?

A organização sistemática do inquérito em dois momentos sequenciais — primeiro a definição dos conceitos ideológicos nos discursos de Salazar e depois a procura da sua tradução no enredo dos filmes —, leva Patrícia Vieira a focar a sua atenção no “conteúdo explícito” dos filmes e a sobrevalorizar os aspetos mais facilmente assimiláveis à produção discursiva do ditador. Não surpreende por isso que o resultado final da pesquisa seja encontrar no cinema do Estado Novo exatamente aquilo que era suposto lá estar. A certo passo da introdução, a autora parece ter consciência deste problema, reconhecendo o perigo de uma perspetiva analítica condicionada pela “unilateralidade da influência” do discurso “político-ideológico” sobre o “artístico-cinematográfico”, perguntando-se a si própria: “Por outras palavras, não perfilharíamos nós uma concepção demasiado mecanicista do cinema como mero reflexo da cosmovisão estadonovista (...)?” (p. 20). Ao terminar a leitura do livro, e apesar da fulgurância interpretativa que por vezes ilumina o texto, somos infelizmente forçados a dar-lhe razão.

[Aniki vol. 1, n.º 2 (2014): 357-362 | ISSN 2183-1750 | doi:10.14591/aniki.v1n2.78]

 

BIBLIOGRAFIA
Chion, Michel. 2011. A Audiovisão: Som e Imagem no Cinema. Lisboa: Texto & Grafia.
Domingos, Nuno e Vítor Pereira, dir. 2010. O Estado Novo em questão, Lisboa: Edições 70.
Piçarra, Maria do Carmo. 2006. Salazar vai ao Cinema. O Jornal Português de Atualidades Filmadas. Coimbra: Minerva.
———, 2011.  Salazar vai ao Cinema II. A “Política do Espírito” no Jornal Português. Lisboa: DrellaDesign.
Torgal, Luís Reis, coord. 2000. O cinema sob o olhar de Salazar. Lisboa: Círculo de Leitores.

 

[1] Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, INET-md, 1069-061, Lisboa, Portugal.

[2] Para uma crítica da personalização na figura de Salazar dos estudos sobre a ditadura, ver “Introdução” in Domingos e Pereira (2010). Nesse sentido, a escolha dos títulos das duas principais obras sobre o cinema no período inicial da ditadura que precederam este livro, “O cinema sob o olhar de Salazar” e “Salazar vai ao cinema”, partilham da mesma lógica.