Estudos do Vídeo Musical
Sérgio Dias Branco [1]

Frith, Simon Andrew Goodwin, e Lawrence Grossberg, eds. 1993. Sound and Vision: The Music Video Reader. Londres: Routledge, 228 pp.
Kaplan, E. Ann. 1987. Rocking Around the Clock: Music Television, Postmodernism, & Consumer Culture. Londres: Methuen, 224 pp.
Jullier, Laurent e Julien Péquignot. 2013. Le clip: histoire et esthétique. Paris: Armand Colin, 224 pp.
Vernallis, Carol. 2003. Experiencing Music Video: Aesthetics and Cultural Context. Nova Iorque: Columbia University Press, 480 pp.

O vídeo musical permanece uma forma audiovisual pouco estudada em profundidade, como parte da arte da imagem em movimento e da história da cultura. Apesar desta escassez, nas quatro últimas décadas têm sido publicados em livro alguns estudos sobre este tópico. São esses estudos do vídeo musical que analisarei em seguida.

Rocking Around the Clock de E. Ann Kaplan data da década de 1980. Nele encontrávamos três ideias principais. A primeira ideia era o entendimento da Music Television (MTV) como uma instituição que produzia um discurso, situando o espectador no mundo e em relação ao mundo a partir do consumo literal (a compra de discos e de produtos de patrocinadores) e psicológico (a obtenção de uma imagem e de um estilo de vida). A segunda ideia era a definição da MTV como o exemplo extremo da estética pós-modernista, usando múltiplas referências descontextualizadas, obscurecendo a distinção entre ficção e realidade, optando pela auto-reflexividade, fazendo desaparecer a noção de personagem, utilizando o rosto humano das estrelas como âncora, e subvertendo relações de continuidade causa-efeito e espaço-tempo. Além disso, Kaplan entendia que os vídeos da MTV empregavam, de modo massificado, técnicas vindas do cinema de vanguarda colocando assim em causa polaridades histórico-críticas. Estas características estão relacionadas com a terceira ideia, que era a de que estes vídeos baralhavam o passado, o presente, e o futuro na representação, construindo um tempo contínuo no qual o sentido da história como lugar de onde falamos desvanecia. Este foi um trabalho seminal e original sobre a MTV que gerou interesse académico sobre este tema, não separando o vídeo musical da MTV. Tal enquadramento era compreensível porque durante alguns anos a MTV foi a sua única casa. Por isso, podemos dizer que a MTV contribuiu para a criação dos telediscos ao criar a necessidade da sua procura e ao funcionar como a sua montra no meio televisivo. Os estudos que se seguiram iriam concentrar-se no público-alvo deste canal de televisão. Sean Cubitt havia de escrever quatro anos depois:

O repertório de efeitos usados no vídeo musical, não tanto no clipe individual, mas na expectativa levantada pelo discurso do vídeo pop, são efeitos supostamente para atrair a juventude, uma resposta à necessidade de produzir um excesso como a pop ela mesma produziu. (1991, 63) [2]

Nem Kaplan, nem Cubitt, removiam o vídeo individual do fluxo televisual. A uniformidade do discurso da MTV sobrepunha-se à diversidade no vídeo musical. Isto é tornado explícito pelos cinco tipos de vídeo musical que ela identifica (55): romântico, socialmente consciente, niilista, clássico, pós-modernista, todos com as mesmas características formais enumeradas em cima. Para a autora, a diferença estava nos modos discursivos de construção do olhar e de representação de género, entendendo a MTV como uma ilustração exemplar da pós-modernidade. No entanto, isto não quer dizer que Kaplan ignorasse a diferença entre a MTV e o vídeo musical. Ao contrário de alguns dos estudiosos que se seguiram, ela não o fez. Logo na introdução, lemos que o “livro dá atenção, não aos vídeos em geral, mas à sua integração na instituição que é a MTV” (11).

Na década seguinte, Simon Frith, Andrew Goodwin, e Lawrence Grossberg editaram Sound and Vision: The Music Video Reader. Eles criticavam o facto de Kaplan ter negligenciado a música e as letras em favor da componente visual dos vídeos musicais assim como o contexto sociológico em que a MTV se foi desenvolvendo. Segundo os autores, o contributo dela só se referia à primeira fase da MTV, a menos importante historicamente, além de não reconhecer a variedade na programação deste canal de televisão, bem patente na utilização de apresentadores nalguns deles. A maior parte destes argumentos foram apresentados por Goodwin, escrevendo que “as classificações pós-modernas da pop muitas vezes funcionam ao desafiarem a categorias genéricas de maneiras que são difíceis de entender quer musical quer sociologicamente” (47). Este volume pretendeu discutir o lugar do vídeo na indústria da música popular e das relações económicas e sociais de produção e consumo que dela advêm. A sua análise visava uma contextualização e apreciação do vídeo musical e da MTV. Os telediscos surgiram na história da música com a nova pop corrente no início dos anos 1980 e podiam ser melhor apreciados se esse contexto e desenvolvimento forem considerados. Um bom exemplo disso era a análise detalhada de “Thriller” (1984) de Michael Jackson, assinada por Kobena Mercer, que dissecava a complexidade dos elementos do vídeo: a comercialização do álbum, a persona do artista, os elementos paródicos da narrativa, o subtexto sexual, a relação com o cinema de terror, e o uso da metáfora (93-108). No capítulo final, Grossberg apontava que o videoclipe não tem características estruturais e estéticas fixas, pois “está constante e rapidamente em mudança” (187). Este era um ponto de vista central no livro. Este último ensaio explorava ainda o contexto de emergência desta forma “através da consideração da mudança do lugar do cinema” (187) na cultura musical. No fundo, esta coleção de textos dedicou-se a debater as lacunas e a emendar as imprecisões históricas, sociológicas, e musicológicas dos estudos anteriores. Não se interessou tanto pelas características pós-modernistas do vídeo musical, que Kaplan tinha identificado.

Recentemente, Experiencing Music Video de Carol Vernallis veio propor uma abordagem diferente. Trata-se de uma alternativa aos estudos centrados na MTV, que se foca nos vídeos musicais como obras audiovisuais, desinteressando-se dos meios através dos quais são distribuídos e exibidos. Afinal, a televisão deixou de ser o meio privilegiado para os mostrar. Os vídeos musicais estão agora dispersos, projetados em locais de convívio, acessíveis na Internet, vendidos em lojas, já não são encontrados apenas em programas e canais televisivos dedicados. Nos estudos de televisão, foram deixando por essa razão de ser considerados um assunto crítico a merecer discussão (e.g., Corner 1999). Estes vídeos são agora procurados, colecionados, revistos, por quem quer conhecer o novo vídeo de um artista musical ou o mais recente trabalho de um realizador nesta área. Assistimos, portanto, a um distanciamento entre a MTV e o vídeo musical, quer pela mudança da programação da primeira para atrair mais anunciantes e espectadores, quer pelas novas vias de difusão de que o segundo agora dispõe. Hoje em dia, “[a]té a MTV2, o pequeno canal irmão dantes dedicado unicamente aos vídeos, começou a mudar para programação original” (Caramanica 2005, par. 3). De acordo com Van Toffler, presidente da empresa em 2005, a novidade do vídeo desapareceu e foi necessário que o canal se desenvolvesse “para além de um modelo de rádio” (Caramanica 2005, par. 10). O modelo de rádio a que Van Toffler se refere designa a ocupação do tempo de antena com canções com a configuração de vídeos musicais.

É nesta nova conjuntura que Vernallis rejeita o requisito de enquadrar a discussão do vídeo musical a partir da MTV, para a qual é apenas reservada uma menção fugaz (287). A sua abordagem é baseada em The Classical Hollywood Cinema (Bordwell, Thompson, e Staiger 1985), uma análise influente das convenções do cinema clássico de Hollywood. Utilizando um modelo de investigação semelhante, ela analisa as convenções estéticas do vídeo musical e considera os contextos culturais nos quais estas convenções podem ser interpretadas. Quando a investigadora indica que os videoclipes têm técnicas básicas, recorrentes e reconhecíveis, está a construir um conceito equivalente ao de estilo clássico de Hollywood que encontramos no livro de Bordwell, Thompson, e Staiger, um estilo que estes autores alegam ter sido empregue em diversos géneros. Vernallis explica que os géneros de vídeo musicais são uma consequência dos géneros musicais — por exemplo, “O rap é o único género comprometido de modo consistente com a criação de um sentido de lugar: os vídeos muitas vezes apresentam bairros de habitação social, pequenas lojas, e placas de rua identificáveis” (78). O livro propõe a categorização de convenções como estas por temas. Há um capítulo sobre os cenários, que tendem a ser genéricos e retratam lugares associados aos diferentes géneros musicais. Há outro sobre a figura humana ou as atrizes e os atores, que são geralmente as estrelas musicais e que podem ser narradores, personagens, ou aparecerem como elas próprias, sendo muitas vezes isoladas dos extras. Outros capítulos centram-se em elementos como adereços, guarda-roupa, cor, espaço, textura, e tempo, componentes que geram um excesso que compensa a falta de diálogo e suplementa o fluxo e as mudanças da música. Experiencing Music Video é particularmente perspicaz na observação dos parâmetros musicais como o ritmo e o timbre na sua relação com o trabalho sobre a imagem. Isto reflete a formação da autora, que estudou música e que traz um grande conhecimento musical para as três análises detalhadas da segunda parte do volume.

O livro de Vernallis é bem sucedido tendo em conta o seu projeto, na medida em que “se foca em aspetos particulares do vídeo musical — volatilidade, fragmentação, ludicidade, heterogeneidade, e densidade” (285) e traça uma “descrição densa de uma estrutura que engloba a grande escala e o local” que mostra como “a música, a imagem, e as letras abrem espaço umas para as outras e têm funções diferentes em diferentes níveis hierárquicos” (285). A autora tem consciência de que os exemplos que ela examina cobrem apenas parte das possibilidades do vídeo musical, mesmo que essa parte seja maioritária e defina uma tendência estilística geral. Este estudo é um contributo importante para o conhecimento das convenções estéticas dos vídeos musicais, que são mais numerosas e complexas do que as características pós-modernistas inicialmente associadas a eles. Acima de tudo, estas convenções não são definidas como limitações, mas simplesmente como qualidades semelhantes partilhadas por obras diversas. Daí que o vídeo musical seja descrito como um “género distinto” (x), no sentido de uma classe de obras com aspetos que as ligam.

Le clip: histoire et esthétique de Laurent Jullier e Julien Péquignot, publicado no ano passado em França, merece um destaque, desde logo, pela sua origem. Os estudos do vídeo musical têm tido o seu centro nos EUA. Como seria de esperar, os três volumes que já analisei constam da bibliografia deste livro. Os autores afirmam desde o início a sua posição contra uma definição do (video)clipe, sublinhando o seu carácter de extrato ou peça escolhida e objeto de promoção ou substituição (13). Encontramos neste livro o estado da arte sobre este tópico, arrumado em três aspetos marcantes dos vídeos musicais, embora o subtítulo apenas reflita os dois primeiros: históricos, estéticos, e temáticos. Sem o mesmo dedicado trabalho teórico, estes capítulos continuam a análise formal minuciosa de Vernallis e o enquadramento sociocultural de Frith, Goodwin, e Grossberg. Prossegue também a ligação do vídeo musical ao pós-modernismo, menos através de referências a Kaplan, que é apenas citada uma vez, e mais através de numerosas menções a Frederic Jameson, nomeadamente a insistência na dimensão superficial, plana, reciclada, e historicista (ou estilisticamente canibal) das imagens pós-modernistas (e.g., Jameson 1990).

Se Jullier e Péquignot fazem o ponto de situação do estudo do vídeo musical, é inevitável que mostrem as faltas neste campo. Este parece ser um intuito do livro assumido na conclusão, quando dizem que há realizadores de vídeos musicais como Michel Gondry e artistas musicais como Michael Jackson que são celebrados sem que isso se traduza numa maior atenção dada aos vídeos (207-8). Esta é uma das limitações de que Vernallis poderá ter consciência, dado que ela sugere que há várias exceções à sua ampla descrição. Seja como for, a análise penetrante da obra de um cineasta ou de um músico com uma unidade estética marcante, tendo uma maior atenção à criatividade nos vídeos musicais e à sua interação com a música, implica necessariamente uma crítica cultural. Só assim poderemos estudar os vídeos no contexto da sociedade capitalista, como produtos dela e como possíveis desafios a ela. Para isso, é preciso que os estudos do vídeo musical critiquem a abordagem pós-modernista que os continua a marcar. Teresa L. Ebert tem examinado com grande precisão teórica a maneira como essa conceção tem levado a uma separação entre a cultura e a estrutura económica e social e os processos históricos. A cultura é pensada como tendo uma esfera totalmente autónoma. Ebert põe à vista a confusão deslumbrada de Jameson, que confunde a imagem invertida e dissolvida das relações sociais e de produção, que toma forma na complexa textura em camadas do nosso quotidiano, com a realidade (2009, 64-65). O apelo clarificador que ela lança assenta como uma luva aos estudos do vídeo musical:

Os prazeres e seduções dos detalhes saturam a vida quotidiana e todos os aspetos da cultura no capitalismo burguês. No entanto, devemos evitar confundir a vertigem dos detalhes ao nível da circulação de mercadorias com a realidade do capitalismo ao nível da produção. Em vez de fetichizar a falta de profundidade, noutras palavras,  a crítica cultural precisa de produzir um “conhecimento profundo” da realidade e entender a realidade e a sua concretude no seu materialismo e relações históricas. (Ebert 2009, 65)

[Aniki vol. 1, n.º 2 (2014): 363-368 | ISSN 2183-1750 | doi:10.14591/aniki.v1n2.75]

 

Bibliografia
Bordwell, David, Kristin Thompson, e Janet Staiger. The Classical Hollywood Cinema: Film Style and Mode of Production to 1960. Nova Iorque: Columbia University Press, 1985.
Caramanica, Jon. “I Screen, You Screen: The New Age of the Music Video”. The New York Times, 31 Jul. 2005, http://www.nytimes.com/2005/07/31/arts/music/31cara.html.
Corner, John. Critical Ideas in Television Studies. Oxford: Oxford University Press, 1999.
Cubitt, Sean. Timeshift: On Video Culture. Londres: Routledge, 1991.
Ebert, Teresa L. 2009. The Task of Cultural Critique. Urbana e Chicago: University of Illinois Press.
Jameson, Frederic. Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism. Durham, NC: Duke University Press, 1990.

[1] Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, 3004-530 Coimbra, Portugal.

[2] Todas as traduções para português são minhas.