Os Documentários Industriais de 1933 a 1985
Robert Stock [1]
Paulo Miguel Martins. 2011. O cinema em Portugal. Os documentários industriais de 1933 a 1985. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. ISBN: 978-972-27-1944-5.
Em Portugal, a pesquisa científica sobre sub-géneros do filme documentário e não-ficcional constitui, a avaliar pelo número de publicações, um campo de investigação bastante dinâmico. Para além de diversas coletâneas (Lopes e Figueiredo 2004; Penafria 2011), podem por exemplo ser mencionados os trabalhos de João Mário Grilo (2006) e de Maria do Carmo Piçarra (2006 e 2011). Esta última centra as suas investigações nos filmes documentais de propaganda e políticas cinematográficas do Estado Novo, tema sobre o qual também Patrícia Vieira em 2011 lançou uma publicação. Estes estudos têm sido complementados com análises que focam não só a dimensão política, mas também a produção fílmica amadora em Portugal durante o regime autoritário (Cf. Sampaio 2013).
É nesta linha de análises críticas sobre as imagens em movimento produzidas antes de 1974 que podemos situar a obra de Paulo Miguel Martins, professor no Instituto Politécnico em Leiria, objeto desta recensão. A investigação de Martins ocupa-se de documentários industriais do período entre 1933 e 1985, indo portanto para além da época do Estado Novo, e assim constituindo um importante contributo para esta área de investigação. A publicação é baseada na tese de doutoramento de Paulo Miguel Martins em História da Cultura e das Mentalidades no Período Contemporâneo, apresentada ao ISCTE-IUL e contou com o apoio do Projeto Teoria e Estética do Documentário da Universidade da Beira Interior.
Nos três primeiros capítulos Martins apresenta a moldura teórica e o contexto histórico-cinematográfico dos seus objetos de estudo e das entrevistas, que são analisadas nos capítulos IV e V.
No primeiro capítulo, Martins reflete sobre a forma como os filmes documentários podem ser usados como fonte de investigação histórica, concluindo que estes filmes não podem ser compreendidos como simples “gravações” mas antes como encenações específicas (19-20, 44). Martins tenta, ainda neste capítulo, colocar em diálogo teorias oriundas dos estudos de memória e estudos fílmicos. Embora este seja um importante e produtivo aspeto, não fica por vezes clara a sua relação com o objetivo principal da investigação.
A obra prossegue com um apanhado da história do filme e do cinema em Portugal, descrevendo detalhadamente o seu desenvolvimento por décadas. Embora esta contextualização seja relevante para a argumentação posterior, existe atualmente uma série de obras de referência sobre a história do cinema português, pelo que possivelmente não se justificaria um capítulo de tal extensão sobre o tema.
É então no terceiro capítulo que Paulo Martins começa a apresentar os resultados da sua investigação. Segundo o autor, foram selecionados para análise um total de 310 filmes com duração variada entre 6 a 24 minutos (122). Por norma, os chamados “filmes de prestígio” eram mostrados no cinema antes da longa-metragem de ficção e foram produzidos até aos anos 80.
O autor estabelece uma correspondência entre o desenvolvimento no setor industrial e a produção de filmes industriais, ou seja, uma relação entre a conjuntura económica e a produção fílmica no período analisado. Enquanto, por exemplo, nos anos 40 uma grande parte dos filmes era dominada pela área da construção civil e obras públicas, já nos anos 50 abundavam filmes da indústria de equipamentos de transporte e da indústria alimentar. Na década de 60 surge a indústria metalúrgica em grande plano. Martins constata que o contexto da revolução e das mudanças políticas nos anos 70 fazem aparecer filmes sobre a Lisnave e a Setenave, os quais nesta fase pós-revolucionária apresentam de forma paradigmática as novas condições de trabalho (139). Os filmes industriais da década de 80 são sobretudo dominados pelo material eletrónico e ótico.
O quarto capítulo, que Paulo Martins dedica à análise de entrevistas feitas aos realizadores dos filmes escolhidos debruça-se sobre os motivos que levavam as empresas a apostar na produção de “filmes de prestígio”. Esta secção aborda temas como tempo de produção (construção do guião, seleção da equipa) e orçamento, ou seja, as receitas que eram necessárias pela realização dos filmes. Um dos aspetos mais interessantes desta secção é revelar que muitos realizadores que mais tarde se tornaram grandes nomes do cinema em Portugal (entre eles, Manoel de Oliveira, António Macedo, Seixas Santos, António-Pedro Vasconcelos ou José Fonseca e Costa, além do diretor de fotografia Abel Escoto) (170), participaram de alguma forma na produção destes documentários industriais.
O facto de que muitos destes realizadores fizeram documentários industriais no início da sua carreira é, de alguma forma, retomado no âmbito dos objetos de análise do quinto capítulo. Aqui, Paulo Martins mostra que, embora muitas empresas impusessem condições estritas à produção dos filmes, os realizadores gozavam não raramente de considerável liberdade criativa (208). Este é um dos pontos mais interessantes na análise d’O Pão (1959/1964) de Manoel de Oliveira (193ss), uma película que quebra com as convenções contemporâneas do filme industrial ao colocar em cena a produção e distribuição do pão através de montagem de contrastes. Martins considera O Pão como precursor de filmes mais tardios influenciados pela estética do Cinema Novo (195).
Entre outros, o autor refere José Fonseca e Costa ou Faria de Almeida, que se insurgem, em certa medida, contra meios e técnicas convencionais, como seja a voice over, e desenvolvem uma estética pouco comum neste género. Para além disso, a influência de Eisenstein nos filmes em análise é também referida em algumas passagens, não sendo porém explorada em detalhe (190). Estes exemplos tornam clara a relação recíproca entre a produção artística e a cultura do documentário industrial, que se pode também observar em outros casos, como por exemplo nos filmes publicitários [2] .
As referências à ligação dos filmes industriais a inovações de caráter estético são uma constante na leitura desta obra, e seria desejável que este tema fosse tratado com maior profundidade. O próprio Paulo Martins admite as dificuldades na análise da produção e receção devido à escassez de material, o que justificaria que tivesse colocado no centro da investigação a análise dos filmes, a encenação das empresas, fábricas ou métodos de produção e a política de imagem que fazia emergir uma particular relação entre homem e máquina, de maneira a trazer luz a esta relação recíproca entre arte e filmes “feitos por encomenda”. Isso seria ainda uma forma de reivindicar uma maior importância para a autoria destes filmes, um facto que este género — e segundo as observações de Thomas Elsaesser (2009) — relega para segundo plano.
A obra de Paulo Martins constitui um importante contributo para uma área de investigação em crescimento. Ela trata filmes documentários em geral e filmes industriais em particular e penetra com profundo conhecimento nas suas estruturas e sua história, recorrendo a métodos da História Oral e da análise cinematográfica. De louvar, porque muito completo e pioneiro, é o trabalho sobre as entrevistas com os realizadores, que nos levam a descobrir os objetivos, motivos e interesses das empresas que encomendavam esses filmes, e a saber mais sobre a escolha das produtoras e sobre os custos associados às produções.
O autor mostra a importância de ultrapassar o horizonte das empresas industriais e de compreender a dimensão estética deste género, que também fez uso de meios de produção artística. Só resta esperar que surjam mais investigações deste género e, sobretudo, novas leituras críticas da história visual daquelas empresas do período colonial que tentaram encenar as suas atividades em Angola e Moçambique, recorrendo precisamente a filmes publicitários e industriais, mesmo que estes, segundo Martins, tenham tido um impacto limitado (121) [3] .
[Aniki vol. 1, n.º 2 (2014): 375-379 | ISSN 2183-1750 | doi:10.14591/aniki.v1n2.66]
BIBLIOGRAFIA
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