The Persistence of Hollywood
André Rui Graça [1]
Thomas Elsaesser. 2012. The Persistence of Hollywood. Nova Iorque e Londres: Routledge. 395pp. ISBN 978-0-415-96814-0.
The Persistence of Hollywood é o mais recente livro de Thomas Elsaesser, reconhecida autoridade na área da crítica de cinema e dos estudos fílmicos, nomeadamente no campo das pesquisas sobre o cinema germânico e no que concerne ao debate da dicotomia entre autor e indústria. Incidindo sobre o contexto norte-americano, será este último tópico o fino fio condutor desta obra, de 2012. Estruturado de acordo com uma lógica de compilação, quase ao jeito de um best of, o livro aqui em apreço reúne, por um lado, uma série de textos já anteriormente publicados, agora revisitados pelo autor, e, por outro, secções inéditas que tentam atar as pontas soltas e conferir alguma estrutura ao resultado final.
Com efeito, o estudioso já se tinha aproximado de forma concreta da linha de investigação que parece nortear este livro (se efetivamente existir uma) em Studying Contemporary American Film e em European Cinema: face to face with Hollywood. Por isto, e também tendo em conta que Elsaesser atingiu entretanto o patamar de professor emérito, seria expectável que este volume, lançado pela prestigiada editora Routledge, fosse o corolário da carreira do autor. Infelizmente para todos, não o é; o exercício de rear-view mirror resulta apenas com sucesso parcial. Alternativamente, dando o benefício da dúvida, note-se então que a forma como o livro é apresentado pode induzir em erro.
Será certamente uma obra sobre cinema, mas não será fácil, em rigor, afirmar que o leitor terá em mãos um manual de referência sobre o cinema de Hollywood ou, sequer, um contributo relevante e/ou inovador para os estudos fílmicos. Salvar-se-á esta edição, porventura, enquanto peça de literatura. É que Elsaesser, em vez de canalizar o saber acumulado ao longo de quatro décadas de investigação e ensino para a construção ou consolidação de um qualquer argumento, parece perder-se nas malhas da sua própria memória, optando frequentemente por um registo confessional, sem que haja pertinência evidente para tal, cruzando o seu percurso pessoal e lembranças da sua carreira com a história mais vasta da cinefilia. Mais ainda, as suas escolhas subjetivas pessoais e uma certa nostalgia são declaradamente os pontos de partida para a compilação e a escrita.
Aqui, a ideia de “persistência de Hollywood” assume um caráter dual: tanto está associada à perceção íntima do autor de que Hollywood persiste dentro de si e perpassa os seus escritos, como está ligada à discussão da forma como Hollywood tem vindo a persistir, quer através de continuidades, quer de transformações. Curioso notar como parece que a mescla de elementos autobiográficos com pretensões científicas vai estando em voga entre académicos conceituados. Balizando este livro entre dois exemplos conspícuos e recentes, The Persistence of Hollywood — especialmente nos capítulos redigidos de propósito — estará algures entre The Memory Chalet, obra derradeira do historiador Tony Judt, e Atlas of Emotion, que encerra a polémica proto-teoria fílmica de Giuliana Bruno, autora que não resistiu ao impulso de imprimir elementos da sua vida íntima e da sua condição física nas páginas da sua escrita universitária.
Recorrendo bastas vezes ao uso da primeira pessoa e ao contrário do que talvez o autor esperasse, a alternância entre os ângulos de perspetiva de “dentro” e de “fora” pouco auxiliam a compreensão da narrativa da cinefilia na Grã-Bretanha, ensaiada na primeira secção de The Persistence of Hollywood, convenientemente intitulada de “flashback”. Alguns apontamentos, um pouco à deriva, reveladores do apreço que Elsaesser nutre pela da obra de Minnelli, Godard e Nicholas Ray, para além do já supramencionado testemunho unifacetado dos meandros da cinefilia e do aparecimento dos estudos cinematográficos em Inglaterra desde os anos 60, será praticamente tudo o que se poderá esperar da primeira parte. Um vago texto final sobre a polissemia, a história e as implicâncias do próprio conceito de cinefilia conclui a secção, numa tentativa de entusiasmar o leitor para este termo, que, entre outras coisas, tem sido também uma causa.
As três partes seguintes, embora diferentes entre si, consistem, basicamente, em súmulas de questões e lugares-comuns da história dos estudos fílmicos que Steve Neale, David Bordwell, Nowell-Smith, Richard Maltby e o próprio Elsaesser, entre vários outros, já anteriormente haviam articulado e abordado de forma bastante mais criteriosa e eloquente. O génio do sistema, autores dissidentes e a renovação que o New Hollywood significou são temas há muito presentes nesta esfera académica, que são aqui apenas compendiados, e não propriamente revistos. Mas talvez não pudesse ser de outra maneira neste caso, uma vez que a maioria dos textos foi inicialmente publicada há décadas. Levar a cabo um tal trabalho de revisão implicaria alterações de fundo, e, possivelmente, até mesmo um livro todo ele escrito de raiz.
Para efeitos semelhantes, e resistindo igualmente ao dogma ultrapassado de que houve um regresso à estaca zero com o colapso do sistema vertical da indústria do cinema clássico, o The Contemporary Hollywood Reader, editado por Toby Miller e publicado também pela Routledge, em 2009, dava já em grande parte conta da temática em questão e de maneira naturalmente mais plural.
Importa ainda referir que, não obstante o seu cariz sintético, este não é um livro para iniciados. Não só o discurso atinge um nível de especificidade bastante profundo, estando impregnado de diversas e constantes alusões a estudos já levados a cabo e a conceitos trabalhados e discutidos fora deste contexto, como há, adicionalmente, um trabalho de depuração e hermenêutica que fica a cargo de quem lê. No limite, poder-se-á dizer que a enfermidade transversal a toda a obra é uma aparente falta de coesão e de rumo. Trata-se de uma obra que tenta ser várias coisas em simultâneo (conseguindo agregar e justapor na mesma página, debaixo do signo do pós-modernismo, considerações sobre história, filosofia contemporânea, estudos culturais, teoria e análise fílmica), sem conseguir, na verdade, ser nenhuma em concreto. Sem um objetivo — um telos — declarado para além da óbvia intenção de elaborar uma retrospetiva e de colocar em cima da mesa velhas problemáticas relativas aos influxos e refluxos de Hollywood, as notas difusas e dispersas por este canhenho fora, por vezes com argumentos subterrâneos e envoltas numa linguagem deveras críptica, perdem energia e dissipam-se em finais anticlimáticos, tão contrários à estrutura clássica do ensaio — e que Elsaesser tantas vezes deu provas de dominar com aprumo. Através destas notas é ainda possível acompanhar-se o percurso de distanciamento por parte de Elsaesser de um registo de escrita anglo-saxónica, assente em princípios de clareza e simplicidade, para se aproximar de um estilo mais denso e brumoso, normalmente associado à filosofia continental contemporânea e amplamente criticado no meio académico pela sua possível propensão obscurantista.
À questão da construção de sentido através de uma linguagem ambígua e da aparente ausência de objectivo de cada capítulo alia-se uma desarticulação no panorama geral da obra. O título, as introduções e os novos textos enxertados sugerem que o livro deve ser lido como um todo, quando, em boa verdade, o resultado é uma colagem de artigos bastante diferentes, publicados em contextos muito específicos — a franca diversidade nos periódicos em que foram primeiramente publicados assim o indica. Daí que, e voltando ao argumento central desta recensão, ao contrário da expectativa que é incutida no leitor, este livro acabe por não ser sobre Hollywood ou sobre uma temática específica sequer. Pese embora a maioria dos textos reunidos analise filmes ou realizadores de algum modo ligados a Hollywood, note-se que, para além disso, poucas afinidades existem entre eles.
O seguinte exemplo é recorrente. Na parte 2, intitulada Genius of the System, depois de dois textos iniciais nos quais, de forma claudicante, se estabelece aquilo a que Elsaesser designa por o “princípio de continuidade” (eis um ponto deveras interessante) no funcionamento de Hollywood, parece haver uma tentativa de elaborar no sentido de explicar um pano de fundo, um espectro, presente na produção hollywoodesca e no seu esmagador sucesso comercial, resistindo à ideia de que Hollywood funcionou em todas as épocas como um sistema organizado. A indagação é, aliás, relativamente simples: se Hollywood não é algo determinantemente concertado como explicar as continuidades; como explicar que se continue a falar de Hollywood como sendo uma coisa una? A este ponto de partida, pertinente e ponderado, segue-se um sobrevoo por uma série de tópicos do domínio da psicologia das audiências, com a coerência que uma série de escritos espaçados por décadas permite, onde perpassam abordagens semióticas e cognitivas que acabam por discursar mais sobre temáticas adstritas à (para)psicanálise do que sobre cinema. Ao fim e ao cabo, fica-se com a impressão de que o tratamento individual das headlines (algumas bastante promissoras) não consegue dar conta da questão inicialmente gizada por Elsaesser. Mais ainda, estas tendências de abordagem têm sido alvo de numerosas críticas, sendo hoje já consideradas um pouco datadas, dadas as suas limitações no que concerne à resposta sustentada e direta de muitas das questões propostas. Como explica Roy Stafford, um exercício semelhante ao de Elsaesser “muitas vezes envolve a criação imaginária de um público ideal que talvez tenha visto os filmes, em vez de questionar o público real acerca daquilo que viu.” (Stafford 2007, 2)
Voltando ao eixo central do presente texto, o mais problemático no meio de tudo isto é que há uma tentativa de forçar a atribuição de uma ordem ao que jamais foi pensado para ser ordenado. Há uma discrepância entre a intenção explicitada no início do livro e o que ele acaba por ser: existe demasiado ruído a obstaculizar a percepção do diálogo pretendido. A tarefa de recauchutagem surte pouco efeito não sendo aqui possível levar os escritos mais além, rumo a uma conclusão açambarcadora, e, assim, conferir-lhes uma segunda vida.
Por outro lado, destacando aspetos mais positivos, a sapiência quase enciclopédica do autor em relação ao estado da arte das tendências da análise fílmica é notável, permitindo que Elsaesser construa uma filigrana quase virtuosa a partir dessa bagagem, bem como é assinalável a versatilidade e a disponibilidade demonstrada para compreender fenómenos do tempo presente, como o apelo do 3D ou Avatar. O rol de casos de estudo é por sinal eclético (havendo menções e capítulos dedicados a obras de realizadores desde Lang e Hitchcock passando por Kubrick e Coppola), havendo uma preferência pela discussão do autor, do seu estatuto e da sua pertinência ao longo dos diferentes momentos históricos de Hollywood. Por exemplo, num capítulo dedicado ao filme de James Cameron e a propósito do realizador-autor na era “pós-autor”, é defendida a ideia de que a evolução tecnológica e dos meios de difusão (Internet, downloads, DVD, etc...) a par do conceito de autor permite que mesmo um filme tão comercial e exigente do ponto de vista da concretização final como Avatar possa ser contemplado como uma manifestação autoral. Talvez o elemento mais original de toda a obra seja precisamente a preocupação de Elsaesser com o digital, a relação do cineasta com as novas tecnologias e os novos fluxos económicos de um negócio na era “pós-industrial” que, em constante mutação, consegue persistir e renascer sistematicamente das cinzas. As duas últimas secções ocupam-se desta matéria.
Em suma, The Persistence of Hollywood é um livro que se deve ler, não pela curiosidade em torno de um desenlace significativo ou em busca de perspetivas de algum modo revolucionárias, mas antes pelo simples prazer da viagem.
[Aniki vol. 1, n.º 2 (2014): 380-384 | ISSN 2183-1750 | doi:10.14591/aniki.v1n2.43]
BIBLIOGRAFIA
Bruno, Giuliana. 2002. Atlas of Emotion. Nova Iorque: Verso.
Elsaesser, Thomas and Warren Buckland. 2002. Studying Contemporary American Film: Oxford: Oxford University Press.
———. 2005. European Cinema: face to face with Hollywood. Amesterdão: Amsterdam University Press.
Judt, Tony. 2011. The Memory Chalet. Londres: Vintage.
Miller, Toby, ed. 2009. The Contemporary Hollywood Reader. Londres e Nova Iorque: Routledge.
Stafford, Roy. 2007. Understanding Audiences and the Film Industries. Londres: British Film Institute.