Editorial #3
Os Editores
O dossier temático e a entrevista
O dossier é constituído por seis ensaios que analisam o cinema expandido, algumas instalações audiovisuais, interativas e imersivas, bem como a vídeo arte nacional e internacional. Foi coordenado por Susana Viegas.
O “cinema expandido”, antes de ser canonizado teoricamente por Gene Youngblood (1970), começou por ser uma prática artística dos anos 60. Os trabalhos de artistas como Stan VanDerBeek, Scott Bartlett, Peter Weibel, Valie Export, Malcolm Le Grice, entre muitos outros, marcaram o carácter experimental e intermedial da ligação entre as mais recentes tecnologias e as imagens em movimento, numa atitude de rutura com os modelos então dominantes numa sociedade conservadora (Export 2003; Weibel 2003). Ainda que estas referências nos remetam para um determinado período do século XX marcado pela experimentação audiovisual, a sua definição permanece em aberto. No nosso caso, o recurso ao termo “cinema” revela-se enganador, pois o conceito de Youngblood não significa a reinvenção da arte cinematográfica mas a “expansão da consciência”. Por isso, o nosso mote inicial não se centra tanto numa vontade de regressar ao conceito, que tem historicamente o seu lugar conceptual e o seu valor estético, mas de trabalhá-lo numa abordagem abrangente, procurando, e explorando, as aberturas que artisticamente permite e, desse modo, indagar algumas das possíveis linhas de fuga. Estas obras espelham novas cartografias do pensamento, enquanto pura temporalidade que cria signos que mapeiam os movimentos do próprio pensamento.
Por outro lado, o nosso mote fora também dado por Peter Greenaway, quando este anuncia a morte do cinema (Greenaway 2007: 98-103). Há uma mudança no paradigma de exibição e receção de filmes. Logo à partida, é uma provocação ao carácter imóvel e passivo da sua visualização e também à própria estrutura interna da linguagem cinematográfica convencional – a “Forma Cinema” de que André Parente fala na entrevista que publicamos (“O Acontecimento Cinema: Entrevista a André Parente”) –, principalmente ao nível da narrativa e das suas possibilidades, da montagem e da descontinuidade espácio-temporal fílmica entre imagens e entre obra e espectadores, num encontro e confrontação de durações. O intervalo, como elemento de pensamento, potencia assim o carácter multidirecional que as imagens em movimento possibilitam.
Múltiplas leituras passaram a ser permitidas, criando uma rede limitada mas infinitamente divisível. Algumas destas linhas de fuga estão aqui representadas, num abrangente grupo de obras heterogéneas provindas de diferentes décadas, nacionalidades e práticas artísticas. Dos consagrados Paul Sharits, Stan VanDerBeek, Steina e Woody Vasulka, Hollis Frampton e Jud Yalkut (“Conceptual Synchronicity: Intermedial Encounters Between Film, Video and Computer” de Yvonne Spielmann), Bill Viola (Carlos Vara Sánchez com “Bill Viola’s Nantes Triptych: Unearthing the sources of its condensed temporality”) e Jane e Louise Wilson (com a tradução de um ensaio de Giuliana Bruno “Ruínas Modernistas, Arqueologias Fílmicas: A Free and Anonymous Monument, de Jane e Louise Wilson”), passando por artistas menos prováveis e leituras disruptivas sobre Julião Sarmento (“Narrativas da Imagem e (Anti)Expanded Cinema em Julião Sarmento” de Miguel Mesquita Duarte e Bruno Marques), Alessandra Sanguinetti (Laila Melchior em “Fotografia de poesia: devires da fabulação, durações em expansão e movimentos do instantâneo”) e os pós-situacionistas (Laura Rascaroli em “Still Drifting? Expanded Situationism and Filmic Dérive”).
Em comum, os seis ensaios partilham a vontade criativa da rutura e inovação, mas também do importante diálogo intermedial com outras formas de expressão artística, para lá das imagens em movimento na sua aceção convencional. Não apenas mudou o lugar que as imagens em movimento ocupam na atual estética e filosofia da arte, como mudou o lugar no qual são vistas. Recorrendo a um ou a múltiplos ecrãs, ou no limite prescindindo deles, a expansão ocorre, em primeiro lugar, na consciência, ao elevar o trabalho intelectual e artístico à enésima potência, à “noosfera”, segundo Youngblood (1970).
Por isso mesmo, quando Greenaway (2007) anunciava a morte do cinema com a invenção do controlo remoto na experiência doméstica que passamos a ter com as imagens em movimento, não devemos pensar que a “morte do cinema” se relaciona diretamente com o número de espectadores de filmes em exibição comercial (na sala de cinema). Fazer essa ligação numérica é passar ao lado das questões de fundo da provocação feita pelo cineasta. As imagens em movimento ganharam outros espectadores através de novas formas de as receber – no museu, mas também em festivais de cinema; num ecrã de televisão, mas também projetadas numa qualquer superfície. Criaram outros problemas e ofereceram outras soluções. Tal como Volker Pantenburg (2014) problematiza, estão em causa regimes temporais conflituantes quanto à sua receção, numa dialética intensa entre atenção e distração. Ou seja, a questão de fundo que permeia estes ensaios não é numérica. Antes questiona “como ver”, “como reagir” e “como aceder” à arte das imagens em movimento.
Como diria Gilles Deleuze, “[a] imagem eletrónica, isto é, a imagem televisiva ou vídeo, a imagem digital que nasce, deve ou transformar o cinema, ou substituí-lo, marcando a sua morte” (Deleuze 1985: 346) [1]. Assim, Deleuze termina A Imagem-tempo com uma alusão a dois recursos que permaneceram esquecidos nos seus escritos sobre cinema mas que devem ser recuperados: o espaço (Spielmann 1997: 516-533) e o espectador (Lessard 2008) das imagens em movimento. Nas imagens digitais, o espaço é reorganizado e a verticalidade da relação com o ecrã é repensada. Justamente, encontramos no ensaio de Giuliana Bruno esta ligação intermedial e a transferência de diferentes formas temporais, bem como uma análise da reorganização multiespacial e redefinição da verticalidade dos ecrãs através das suas obras. É também da ligação intermedial que os ensaios de Laila Melchior, de Miguel Mesquita Duarte e Bruno Marques (ampliação do domínio das imagens em movimento para outras formas artísticas) e de Laura Rascaroli (que procura desterritorializar o conceito de “cinema expandido” analisando imagens derivadas tendo como ponto de partida o conceito de dérive pós-situacionista) se referem. Porém, mais uma vez, aqui a questão também é, julgamos, transhistórica, pois esta disposição artística existe desde sempre, correndo paralela à própria História do Cinema. A vontade de opacidade, de se revelar enfrentando o espectador, ao invés de se mascarar, tornando-se transparente e reprimindo a descontinuidade, remonta ao cinema dos primeiros tempos. Sharits e VanDerBeek recorreram a novas tecnologias com a intenção de expandirem as coordenadas espácio-temporais do modo convencional de fazer e de ver imagens em movimento num processo criativo intermedial que conjuga imagens geradas por computador com cinema, vídeo e instalações. Estas formas de arte criam uma nova cartografia entre ecrãs que supera o itinerário unidirecional do cinema de sala. A descontinuidade espácio-temporal é assumida.
Complementamos o dossier temático com uma entrevista realizada a André Parente que vem reforçar esta ideia, uma ideia que está, igualmente, presente nas suas obras artísticas. Pensemos, por exemplo, na sua exposição interativa Circuladô (2007-2011): numa sala transformada num moderno Zootrópio, são projetadas, em múltiplos ecrãs, imagens de personagens que giram (found footage de diversas origens). Esse aparelho é manipulado pelo espectador que, assim, controla a velocidade e a direção da rotação, e potencia o carácter multidirecional de experiências e leituras.
As recensões de livros e conferências
Nesta secção incluímos recensões a quatro livros e dois relatórios relativos a encontros científicos. A abrir, Empatia e alteridade, que corresponde à tese de doutoramento de José Bogalheiro em psicologia “e em que o autor aborda as relações entre o cinema e a mente humana, foi alvo de recensão assinada por Carlos Natálio. Natálio enaltece a grande erudição de Bogalheiro na indagação das diferentes dimensões e sentidos do que este chama “figuração cinematográfica” e afirma tratar-se de um texto que classifica como “monumento singular, poético, rigoroso” a que o leitor se sentirá impelido a voltar.
“Notas para a Respiração de um Novo Futuro: Uma Leitura de Cinema Português: Um Guia Essencial” é o título da recensão que Adriana Martins fez do guia sobre cinema português editado em São Paulo, no Brasil, com coordenação de Michelle Sales e Paulo Cunha. Martins explica que se trata de uma obra que reúne “ensaios de um leque de investigadores dos dois lados do Atlântico, com distintos interesses disciplinares” e que é composta “por onze capítulos que traçam o percurso evolutivo do cinema português em 110 anos de história”. Enaltecendo o rigor e seriedade dos dados reunidos sobre a evolução do cinema português, sublinha ainda a atualização das referências bibliográficas trazida por esta obra, o que o torna “fonte indispensável para os investigadores e docentes da área”.
Em “Cinema de observação: o olhar autoral”, Rodrigo Lacerda escreve sobre Observational Cinema. Anthropology, Film, and the Exploration of Social Life, de Anna Grimshaw e Amanda Ravetz. Trata-se de uma obra que revisita documentários de referência para “resgatar a relevância daquela sensibilidade cinematográfica na compreensão e relação com o mundo e enquanto ferramenta metodológica e epistemológica da antropologia”. Lacerda comenta como esta obra desconstrói os preconceitos sobre o cinema de observação e propõe que nos leva à essência da construção, consubstanciação e projeção dos sentidos cinematográficos, considerando tratar-se de um contributo importante para o pensamento sobre o cinema, dentro ou fora da antropologia.
Paulo Cunha recenseia Novas & Velhas Tendências no Cinema Português Contemporâneo. Notando que o principal corpus do livro são as entrevistas, constata algumas ausências, quer em termos de entrevistados de referência quer de maior abrangência profissional. Quanto aos ensaios que integram a obra nota a desigualdade entre eles “quer nos propósitos como na redação”, estando uns mais próximos do estilo académico e outros do jornalístico. Cunha saúda, porém, esta edição, que considera “utilíssima para o estudo do cinema português das últimas décadas” mas lamenta, em suma, que os recursos não tenham sido melhor aproveitados e que a reflexão decorrente do projeto não tenha sido mais aprofundada.
A secção inclui o relatório assinado por Wiliam Pianco, Jorge Palinhos e Laís Lara sobre o Encontro Anual da AIM de 2014, que decorreu na Covilhã entre 15 e 17 de maio. Os autores analisam o teor das comunicações de alguns dos painéis – nomeadamente aqueles relativos à “Interatividade” e “Cinema e narrativa” – bem como de alguns Grupos de Trabalho – “Cinemas em português” e “História do cinema português” – que acompanharam de entre a quase centena e meia de comunicações apresentadas.
A encerrar a secção publicamos um texto da investigadora italiana Miriam de Rosa, que relata a 8ª conferência do NECS, cuja edição de 2014 foi acolhida pela Università Cattolica del Sacro Cuore de Milão entre 17 e 21 de junho e cujo tema foi “Creative energies, creative industries”. Não obstante ter resumido as principais atividades organizadas, De Rosa, que considera que a criatividade e a produtividade foram polarizadoras desta edição, centrou-se nas exposições dos keynote speakers: Raymond Bellour, que falou sobre “Cinema and Other Moving Images”; Jason Mittel focado em “Serial Functions of Authorship”; e Janet Wasko, que discorreu sobre “The Commodification of Creativity: the Case of Disney”.
As exposições e festivais
A secção “Exposições e festivais” deste terceiro número da Aniki conta com duas contribuições relativas à atualidade do ano que passou. O primeiro texto, assinado pelo investigador alemão Florian Hoof, concentra-se na última exposição pensada pelo realizador Harun Farocki antes da sua morte inesperada em julho de 2014. A exposição em questão, realizada no coração industrial da Renânia, em Essen, foi o culminar de um projeto de investigação iniciado por Farocki e Antje Ehmann em 2011, Labor in a Single Shot. Os dois organizaram uma série de ateliers em quinze países diferentes, dos quais resultaram os filmes expostos em Essen, reunidos pelo mesmo princípio formal: a obrigação de documentar o trabalho em um único plano único, não durando mais do que dois minutos. Especialista (entre outros) de cinema industrial, Florian Hoof recorda não só a importância do modelo Lumière para o projeto em questão, mas também a relação crítica e distante que o mesmo mantém com a história da racionalização do trabalho.
O segundo texto, assinado desta feita por um especialista italiano do cinema colonial, concentra-se sobre uma das várias exposições que em 2014 se deram por tarefa revisitar – e repensar – a I Guerra Mundial. Face aos múltiplos eventos que se desenrolaram um pouco por toda a Europa em 2014, La grande guerra sul grande schermo (exposição patente no Museo Storico del Trentino até junho de 2015) tem uma particularidade: trata-se de uma exposição inteiramente dedicada às imagens em movimento produzidas durante – ou sobre – o conflito em questão. Tal como nos explica Fidotta, estas imagens encontram-se instaladas de forma espetacular, envolvendo o espectador numa experiência multissensorial. O grande mérito da exposição parece ser, no entanto, o seu questionamento a propósito da eficácia do cinema enquanto médium capaz de representar a guerra.
[Aniki vol. 2, n.º 1 (2015): 1-6 | ISSN 2183-1750 | doi:10.14591/aniki.v2n1.169]
Bibliografia
Deleuze, Gilles. 1985. Cinéma 2: L’Image-temps. Paris: Les éditions de Minuit.
Export, Valie. 2003. “Expanded Cinema as Expanded Reality”, Senses of Cinema, October. Acedido 12 fevereiro 2015. http://sensesofcinema.com/2003/peter-tscherkassky-the-austrian-avant-garde/expanded_cinema/
Greenaway, Peter. 2007. “Cinema is dead, long live cinema?”. In Caderno SESC Videobrasil 3 – 3 (São Paulo: Edições SESC SP): 98-103.
Lessard, Bruno. 2008. “Missed Encounters: Film Theory and Expanded Cinema.” In Refractory: A Journal of Entertainment Media 14. Acedido 27 janeiro 2015. http://blogs.arts.unimelb.edu.au/refractory/2008/12/26/missed-encounters-film-theory-and-expanded-cinema-–-bruno-lessard/
Pantenburg, Volker. 2014. “Attention, please. Negotiating Concentration and Distraction around 1970”. In Aniki : Revista Portuguesa da Imagem em Movimento 1 (2): 328-343.
Spielmann, Yvonne. 1997. “Digitalisation: image-temps et image-espace”. In Der film bei Deleuze/Le cinéma selon Deleuze, edited by Oliver Fahle and Lorenz Engell, 516-533. Verlag der Bauhaus Universität Weimar/Presses de la Sorbonne Nouvelle.
Weibel, Peter. 2003. “Expanded Cinema, Video and Virtual Environments.” In Future Cinema: The Cinematic Imaginary after Film, editedby Jeffrey Shaw and Peter Weibel, 110-125. Cambridge: MIT Press.
Youngblood, Gene. 1970. Expanded Cinema. New York: E. P. Dutton & Co., Inc.
[1] “L’image électronique, c’est-à-dire l’image télé ou vidéo, l’image numérique naissante, devait ou bien transformer le cinéma, ou bien le remplacer, en marquer la mort.” [Tradução nossa]