Empatia e Alteridade
Carlos Natálio [1]
José Bogalheiro. 2014. Empatia e Alteridade – a figuração cinematográfica como jogo. Lisboa: Documenta. 526 pp. ISBN 978-989-8566-40-9.
Quase desde o início do cinema, mas sobretudo a partir do começo da sua problematização teórica, que as relações entre este e o mecanismo da mente humana são fonte de estudo. Pensamos, claro, em The Photoplay: a Psychological Study (1916), considerado um dos primeiros “manuais” de estudos fílmicos, no qual o psicólogo alemão Hugo Münsterberg estabelecia as analogias possíveis entre os dois modus operandi. Se de facto este é um tema fundante dos film studies, não podemos, no entanto e apesar da temática, deixar de olhar com uma aura de singularidade para o presente livro de José Bogalheiro, que corresponde à edição da sua tese de doutoramento em psicologia, especialidade psicanálise. Com uma fulgurante e invulgar erudição e com um estilo que, ao mimar na escrita científica o ideal do “cineasta tecelão” (p. 371) que “pensa poeticamente” (p. 472), o livro propõe-se indagar, no interior da experiência fílmica, das diferentes dimensões e sentidos de uma noção que o autor apelida de “figuração cinematográfica”. A escolha desta última implica uma oposição ao conceito de imagem (p. 29) e a consideração de um processo que põe em atuação um “jogo empático” permitindo a “relação com um outro diferente de si para poder conhecer-se si mesmo” (p. 28 e 38), isto é, que coloca em movimento o “mecanismo” fundante da alteridade. Além disso, uma outra escolha – o colocar no centro do seu argumento a experiência fílmica e, com ela, embora não exclusivamente, o dispositivo da receção – comporta, parece-nos, a intuição de que é nela, nessa experiência, que se deve “procurar” a importância ou sobrevivência do cinema no universo multimediático e de proliferação das imagens.
A obra organiza-se em duas partes. A primeira, com quatro capítulos, é dedicada às diferentes modalidades de relação com a figuração cinematográfica. Quatro dimensões dessa figuração, quatro experiências - a cognitiva, a estética, a empática e a ficcional - cada uma delas atravessada simultaneamente por três planos: o confronto com a alteridade dos três agentes considerados pelo autor, os criadores, as personae ficcionais e os espectadores. A segunda parte é de análise fílmica, com cinco capítulos, cada um dedicado a um filme. São eles: Cat People (1942) de Jacques Tourneur, Europa’51 (1951) de Roberto Rossellini, Lilith (1964) de Robert Rossen, Die Marquise Von O (1976) de Éric Rhomer e Hable Con Ella (2002) de Pedro Almodóvar.
O célebre historiador de arte, ou produtor de uma “ciência sem nome”, Aby Warburg dizia de uma das suas referências intelectuais, o também historiador Jacob Burckhardt, que este equilibrava o que mais convinha a um investigador: a “empatia e o distanciamento” (Koerner, 2011: 36). Essa proximidade e essa distância são as escalas que nos parecem sempre em tensão construtiva na metodologia presente em Empatia e Alteridade. Se a proximidade absoluta dita a impossibilidade de “falar” (Bogalheiro cita várias vezes o último texto de Roland Barthes intitulado precisamente “Falhamos sempre quando falamos daquilo que amamos”), o afastamento “absoluto” produz apenas um falso esforço de objetividade. Por isso, alguns dos conceitos operativos de que a obra se serve equilibram sempre essa duplicidade. Por exemplo, a noção de “rebobinador” que desenvolve a partir do jogo da bobine [2] e do “pescador de pérolas” em Hannah Arendt (p. 471) com que designa a tarefa de lembrança do espectador (p. 468) e a sua própria enquanto investigador (p. 15): “eu rebobinador me confesso” (Bogalheiro, 2014: 23).
A primeira parte da obra abre com uma análise da relação cognitiva com as imagens. Após tomar o partido de Simondon “contra” Sartre numa fenomenologia que não pode separar a imaginação da percepção (p. 41 e ss.) e que tenta superar a oposição realismo/idealismo (ou mundo/imagem), o autor revisita o “cinema de poesia” de Pasolini e o cinema como um enunciável em Deleuze como formas a partir das quais se pode mais corretamente pensar a legibilidade do cinema (p. 52 e ss.). Sobre o “discurso indireto livre” diz: “é a forma estilística da alteridade, é a imagem que o cinema moderno oferece ao pensamento” (Bogalheiro, 2014: 57). É já na parte final do capítulo, numa revisitação da post-theory e do cognitivismo, que o autor encontra os argumentos que lhe permitem fundamentar a sua perspetiva multidisciplinar. Com base na “teoria da integração conceptual” de Fauconnier & Turner (p. 77), na noção de “bissociação” de Arthur Koestler (p. 79) e na análise da “projeção metafórica” (p. 73 e ss.), procura-se uma correspondência entre a imagem interna e a figuração (imagem externa), que não prescinde da busca no nosso corpo dos meios figurativos com que lemos as imagens (p. 90) e do nosso investimento afetivo em objetos simbólicos que determinam e reivindicam outra relação entre as coisas e os signos.
Sobre a experiência estética, o autor começa por desmistificar a ideia de que o distanciamento brechtiano possa ser incompatível com uma noção de empatia, nomeadamente intelectual (p. 96). Mais uma vez “acarinhando” a escala da aproximação e do afastamento, afasta-se da proximidade involuntária que tolhe qualquer imagem de alteridade (p. 143) das teorias ilusionistas e da condição de espectador “adormentado”, alienado e manipulado da filmologia e semiologia dos anos 50 e 60 (p. 99 e ss.). À irrealidade da imagem e da ilusão do espectador-sonhador, José Bogalheiro começa por apoiar-se em Henri Bergson e António Damásio para substituir a sequência “realidade-ecrã-ilusão” uma outra composta por “cinema-mente-emoção” (p. 105). A ideia de “cérebro como estúdio de cinema” (Damásio) e a noção de “cinematógrafo interior” (Bergson) ajudam a perceber qual a natureza da relação entre as ficções cinematográficas e a nossa participação enquanto espectador. Defendendo um espectador implicado (p. 111) e emocionalmente participante (p. 114 e ss.), e a partir das respostas aos paradoxos da ficção e da percepção imagética, o autor convoca a teoria do “faz-de-conta”, cujos argumentos foram desenvolvidos por Kendal Walton (e a disposição do ser humano para esse tipo de jogos, justificando a sustentabilidade da nossa adesão às ficções), sem abdicar de um sentido de realidade que relegaria a arte para o “abismo” da ilusão. No interior desses jogos, a participação efetiva e afetiva do espectador faz-se, segundo o autor – e apoiando-se desta vez em Walter Giovanelli e na noção de imaginação icónica centrada (p. 128 e ss.) – através de um sentimento de empatia, que nos permite aceder ao estado emotivo dos seres ficcionais, e de compreensão mimética, sendo o desejo sempre algo que implica esse mimetismo, ou seja, é da relação com o outro que ele se extrai (p. 143 e 219).
Na primeira metade do capítulo 3 dedicado à experiência empática, o investigador procura situar a importância da empatia para o desenvolvimento do indivíduo, tendo como intuito justificar a razão de ser das respostas empáticas automáticas às obras de arte (p. 141). Com base no trabalho de Heinz Kohut e na proposição do seu método “introspectivo-empático” para a psicanálise, ou da definição da empatia como “introspecção vicariante” (p. 164), coloca-se em evidência a necessidade de uma observação empática do interior (do nosso e dos outros), dada a importância do narcisismo com valor de relação primordial. Com base em Roland Barthes e no “silêncio” de Abraão, o “anti-herói de Kierkegaard” (p. 177 e ss.), José Bogalheiro contrapõe ao Homem Culpado da psicanálise e ao Homem Trágico da psicologia do self, o Homem Incerto, que, ao ser atravessado por contradições e paradoxos, longe de um ideal de self coeso, pode muito bem ser o “analista” e/ou o criador do “espaço mental para a auto-reflexividade” (p. 183). Na segunda metade do capítulo, o autor parte de considerações de fisiognomia e da oposição dos paradigmas da imagem-sombra e da imagem-reflexo do quadro da representação ocidental (p. 197) para a consideração do rosto, enquanto “paradoxo encarnado” (p. 210) que dá a ver, simultaneamente, o familiar e o estranho, o transparente do espelho e o opaco da sombra. Se o cinema tenta aproximar algo de próximo – um rosto –, e algo de distante – uma paisagem (p. 209) – é a consideração sensível da relação entre interior e exterior que permite, segundo Rudolf Kessner, “ver de longe o perto e de perto o longe, ver conjuntamente os opostos” (p. 31 e 211). Parece implícito nas palavras do autor que a leitura do paradoxo pelo qual a criança vê no rosto da mãe o primeiro espelho (Winnicott) mas também a estranheza do seu comportamento enigmático (Meltzer) (p. 203) é aquela que mostra o rosto como espelho-sombra, como empatia no encalce da alteridade (p. 204) e a única forma de fazer justiça ao homem como “criatura móvel, rítmica, dramática” (p. 210).
No começo do capítulo 4, dedicado à experiência ficcional, o autor tece algumas considerações sobre a modificação do paradigma artístico com a crise paradoxal da arte contemporânea (p. 213), o estatuto de artista romântico separado da obra e próximo do mercado (p. 215) e a forma como a arte relacional dos anos 90 espelha essa turbação que a comunicação estética impunha à arte como espaço de articulação entre o singular e o universal (p. 216). Esta contextualização, juntamente com a elucidação da relação entre o “trabalho” da imaginação e a realidade em Lev Vigotsky e a natureza da “conversão romanesca” (René Girard) produzida pela criação artística (p. 217 e 218), permite a José Bogalheiro definir as coordenadas sob as quais se pode/deve pensar as etapas do percurso da vida do criador. Baseando-se no esquema de Roland Barthes – entre meio-da-vida, luto, mudança, fantasma do criador –, percurso pontuado por provas, e com apoio da formulação de Jean-Michel Quinodoz que aproxima a formação de símbolos com o trabalho do luto (p. 229), afirma-se então a relação destas etapas com os processos afetivos análogos dessa ausência do objeto querido, que é simultaneamente patológico e criativo/originário. Por isso, escreve-se a dada altura: “O luto originário é o luto da omnipotência. Todo aquele que faz uma obra criativa reconhece implicitamente que não criou o mundo (...)” (Bogalheiro, 2014: 234). Nesse espaço de sacrifício há um momento de queda do criador (p. 243 e ss.) e surge então, como resultado de uma conversão, a criação, a nova forma.
A capacidade de trazer para perto o que está longe, “ação” metodológica a que fizemos alusão [capacidade que é, no fundo, o cerne do paradoxo inerente à experiência empática (p. 155)], é também muito do que acompanha a escolha dos filmes a analisar na segunda metade da obra. Estes são vistos como “reverso do verso” dos fenómenos estudados na primeira metade, ou nas palavras do autor, a sua “possibilidade figurativa” (p. 29). Tendo como pano de fundo esse “método empático de um rebobinador”, há em comum nestes filmes uma ideia da “insuportabilidade da visão da loucura das mulheres” protagonistas (p. 33). A emoção como verdadeira fonte da neurose traumática permite por em espelho a patologia das protagonistas e a “inquietante estranheza” com que o público recebeu as obras. Cabe ao espectador participante, pelo “método” empático, nomear o “corpo estranho” que representa a experiência de alteridade daquelas. Para o autor, numa análise guiada pelo “valor emocional” do trauma (p. 256), esses corpos estranhos são: a animalidade em Cat People (p. 257 e ss.), a espiritualidade em Europa’51 (p. 300 e ss.), o desejo em Lilith, (p. 336 e ss.), a conceção em Die Marquise Von O (p. 379 e ss.) e a “ternura” em Hable con Ella (p. 426 e ss.). Se a figura é, de certa forma, o espaço transicional entre a idealidade e a matéria, e se, como diz Serge Daney em Itinéraire d'un ciné-fils “o cinema é a arte de inventar objetos transicionais”, ou ainda como refere José Bogalheiro, se são os filmes que nos “permitem a loucura de lidar com o mundo que perdemos” (p. 13), então há algo de transicional entre uma perda e um ganho, entre uma teoria e uma prática, inerente à metodologia desta investigação.
Sem termos naturalmente espaço aqui para entrar em detalhe sobre a análise fílmica de cada obra escolhida pelo autor, diga-se apenas que estas ilustram, em toda a sua minúcia, esse método da “estratégia da aranha” em Lilith (p. 355), de enredar numa “teia, rede ou trama” os objetos fílmicos com o intuito de lhe comunicar uma “significação poética”. Como também se escreve mais adiante, essa qualidade evidenciada pelas teias – “a tenacidade, resistência e a elasticidade” – são também o seu “modo de produção” (p. 378), isto é, essas são as qualidades de toda esta investigação como um todo, que, ante o parco panorama da publicação de obras desta natureza em Portugal, se afigura como um monumento singular, poético, rigoroso, sobre o qual o leitor se sentirá impelido a voltar por certo no futuro, tal qual “rebobinador” confesso.
[Aniki vol. 2, n.º 1 (2015): 133-137 | ISSN 2183-1750 | doi:10.14591/aniki.v2n1.149]
BIBLIOGRAFIA
Münsterberg, Hugo. 2013. Münsterberg on Film: The Photoplay: A Psychological Study and Other Writings. Ed. Allan Langdale. New York: Routledge.
Warburg, Aby. 2011. Le Rituel du Serpent. Paris: Éditions Macula.
FILMOGRAFIA
Serge Daney: Itinéraire du ciné-fils [entrevista] Dir. Pierre-André Boutang e Dominique Rabourdin. Éditions Montparnasse, França, 1999.
[2] Originariamente conhecida como jogo de Fort/Da: “(...) a criança segurando uma bobine presa por um fio branca a atirá-la com destreza de modo a desaparecer da sua vista, e depois a puxá-la pelo fio saudando alegremente o seu retorno, ao mesmo tempo que pronuncia fort/da (foi-embora/está-aqui).” (Bogalheiro, 2014: 468)