Múltiplas vozes: uma retrospectiva do IV Encontro Anual da AIM
Wiliam Pianco [1] , Jorge Palinhos [2] , Laís Lara [3]

IV Encontro Anual da AIM, Covilhã, Portugal, 15-17 de maio de 2014.

Aconteceu entre os dias 15 e 17 de maio de 2014 o IV Encontro Anual da AIM – Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. A UBI – Universidade da Beira Interior –, na Covilhã, acolheu o evento que, em sua quarta edição, já goza o status de referência portuguesa entre investigadores nacionais e estrangeiros interessados em trabalhos dedicados ao cinema, ao audiovisual e em suas variáveis, bem como na inter-relação entre estes e múltiplas áreas da pesquisa científica.

A quase centena e meia de comunicações apresentada, repartida pelos três dias do encontro, é um relevante indicativo da dimensão que a AIM tem vindo a alcançar. Proporção que serve como sinônimo da resistência de seus organizadores em meio a um período que se apresenta pouco propício ao investimento na reflexão sobre as humanidades e, em especial, sobre as artes.

Se a predominância do idioma português parece óbvia em um evento dessa natureza em Portugal, nesta edição dominou o português do Brasil: pela primeira vez em sua história, a AIM recepcionou uma maioria de comunicações provenientes de universidades brasileiras.

Se as declinações do idioma redundaram numa aproximação entre investigadores de Portugal e do Brasil, as temáticas apresentadas ao longo do evento suscitaram ricas e instigantes discussões. Foi o caso, por exemplo, do painel Interactividade, composto pelas comunicações intituladas “Além do puro entretenimento: jogos digitais como produções expressivas” e “Estudos para inclusão de efeitos visuais interativos em shows musicais”, apresentadas, respectivamente por Bruno Henrique de Paula (Brasil/UNICAMP) e Fernanda Carolina Armando Duarte (Brasil/UNESP-FIT). Tal painel indica os diferentes pontos de abordagem que excederam os limites do cinema e do audiovisual, bem como é revelador da pertinência de trabalhos que ultrapassam as delimitações das línguas e das culturas. No caso de Bruno Henrique, refletindo sobre a expressividade nos jogos digitais e seu potencial fruidor que vai além do puro entretenimento. Fernanda Duarte, por sua vez, direcionando suas atenções para a possibilidade de construções narrativas provenientes dos efeitos visuais em espetáculos musicais com projeção em direto.

Orientadas por tendências aproximadas, as comunicações de João de Mancelos (Portugal/UBI), Fátima Chinita (Portugal/CIAC, IPL-ESTC) e Francisco Merino (Portugal/UBI-LabCom) debateram as transformações na narrativa – motivadas por princípios artísticos ou económicos. As falas do painel Cinema e Narrativa abordaram, por exemplo, as adaptações cinematográficas da clássica história do Capuchinho Vermelho – “Thrice Upon a Time: How Cinema Is Subverting Little Red Riding Hood”, de Mancelos –, analisando as subversões que três versões cinematográficas fizeram desta história, segundo um ponto de vista psicanalítico e económico. O interesse do audiovisual pelos contos de fadas é relativamente recente e surge enquadrado numa abordagem recorrente a temas do fantástico com que o cinema tem tentado cativar um público cada vez mais juvenil. O investigador, na oportunidade, destacou fundamentalmente como estas adaptações moldam a narrativa original de Charles Perrault para acomodar os valores e interesses do seu público, nomeadamente no que diz respeito ao papel da mulher.

Em “Quando o impossível acontece: disnarrativo ou a narratividade em série”, Fátima Chinita abordou a questão da disnarratividade. Partindo do filme La Belle Captive (1983), de Alain Robbe-Grillet, Chinita analisou mecanismos com que uma corrente do cinema moderno tentou quebrar a estrutura aristotélica da narrativa, como o dispositivo da serialidade, em que as ações se vão sobrepondo – não de forma causal e cronológica como na estrutura aristotélica –, mas de modo a criar um código de significados que tem de ser decifrado pelo espectador.

Finalmente, Francisco Merino (“Narrativas Cinematográficas Expansivas: Séries, Sequelas e Transmediação”) tratou do tema da transmedialidade, recentemente popularizado por Henry Jenkins. Merino notou que a prática de expandir um universo ficcional através de vários suportes não é nova no audiovisual, embora tenha ganho maior preponderância em tempos atuais, especialmente pelo mecanismo da “sequela” – ou continuação –, em que narrativas cinematográficas são desde logo repartidas em três ou mais filmes, de modo a assegurar uma rentabilização de meios e fidelização de públicos. Neste contexto, estaria em causa a expansibilidade, que se torna alicerce primeiro da criação de narrativas – e não simplesmente a consequência de um sucesso comercial.

Especificamente sobre o uso do audiovisual no contexto sociopolítico brasileiro contemporâneo, duas comunicações merecem destaque por suas características questionadoras. Felipe da Silva Polydoro (Brasil/USP) lança a seguinte pergunta por meio de sua comunicação “Discursos de junho: uma análise de registros audiovisuais dos protestos no Brasil”: tendo como enfoque tanto a política das imagens quanto aspectos específicos de linguagem documental, como podemos apreender a série de vídeos anônimos realizados durante as manifestações de junho de 2013 em diversas cidades brasileiras? O recorte temático de Fabio Raddi Uchôa (Brasil/UFSCar) aproxima-se do questionamento de Polydoro por seu interesse no discurso proveniente de produções publicitárias audiovisuais da e na cidade de São Paulo que propõem uma “limpeza social” no centro paulistano. Com “Imagens da gentrificação: o centro de São Paulo e a publicidade do Grupo INK”, Uchôa problematiza: a gentrificação publicitária, nesse caso, ao serviço dos interesses da especulação imobiliária, recorre a quais estratégias narrativas para promover e disseminar estereótipos?

Preocupado com temas em torno das noções de lusofonia, identidade, imaginário, memória e nacional, o GT Cinemas em Português (I) é um pertinente exemplo da conexão de interesses que circunda investigadores utilizadores de um idioma comum. Integrou a comunicação “O audiovisual como espaço de construção identitária”, de Leandro Mendonça (Brasil/UFF), em que o investigador pôs em pauta a língua portuguesa como ponto de encontro cultural entre nações, focando, todavia, o audiovisual. Mendonça questionou, a partir do termo lusofonia e de criações do cinema dito nacional, a demonstração – ou representação – de um imaginário social/nacional e a construção de identidade: como se reconhecer e onde se define o espaço desse reconhecimento dentro das nações lusófonas na busca dessa identidade?

Pertinentemente, a fala de Jorge Cruz (Brasil/UERJ) deu continuidade às pautas instigadas por Leandro Mendonça. Com a comunicação intitulada “Cabo Verde: um cinema de financiamento estrangeiro”, Cruz procurou versar sobre autoria, cinema nacional e língua portuguesa nomeadamente no âmbito do cinema cabo-verdiano. Atento ao debate acerca das delimitações do que é nacional, o pesquisador apresentou dados relativos a acordos de coprodução Cabo Verde-Portugal e Cabo Verde-Brasil, provocando a seguinte indagação: até que ponto pode ser chamado de nacional um cinema cujo realizador  não reside no país de origem da obra?

Já Maria Cristina Tonetto (Brasil/UBI) focou outra vertente do cinema em torno do contato entre culturas de um mesmo idioma: as produções universitárias. Com a comunicação “Cinema regional: um estudo da representação do imaginário no cinema universitário luso-brasileiro”, a investigadora debateu a representação do imaginário local a partir dos cinemas feitos por jovens universitários – atenta, contudo, à forma com que os jovens estudantes representam/apresentam o imaginário social das suas respectivas cidades enquanto ferramenta de divulgação regional.

Para finalizar o GT Cinemas em Português (I), Vera Fonseca e Isaque Pereira de Carvalho Neto (Portugal/FLUL) debateram o imaginário lusófono em meio à guerra colonial por meio da comunicação “Tríptico a três vozes – Vozes do feminino”. A fala dos autores atentou na apresentação de registros narrativos e históricos acerca do Movimento Nacional Feminino, e aspectos deste presentes em ficções, sob a perspectiva das obras A Costa dos Murmúrios (1988), de Lídia Jorge, e Os Cus de Judas (1979), de António Lobo Antunes – memória (histórica, coletiva e afetiva), gênero, identidade, realidade social.

O cinema, audiovisual, história e cultura portugueses, não deixaram de ser objeto de atenção. Exemplo claro foi o painel dedicado ao mais longevo dos realizadores em atividade, ícone internacional do cinema português. Intitulado Manoel de Oliveira contou com quatro comunicações – “Os Filmes de Viagem de Manoel de Oliveira: deslocamentos e alegorias”, de Wiliam Pianco (Brasil/UAlg-CIAC); “Intermedial Figurations of Melancholia in European Cinema”, de Hajnal Király (Portugal/UL-CEC); “A Caça e Acto da Primavera: Textos Programáticos na Filmografia de Manoel de Oliveira”, de Adriana Martins (Portugal/UCP-CECC); e “Horizontes Brechtianos no Cinema Português”, de Nélson Araújo (Portugal/ESAP-CEAA) – que tiveram, como objetivo último, alargar os debates e as leituras acerca da filmografia oliveiriana a partir de sua relação com a própria história do cinema português, por meio de seu contraste com outras expressões artísticas – como as artes plásticas, por exemplo –, além de propor eixos analíticos sobre a obra de Oliveira.

Escapando aos contornos específicos das produções de Manoel de Oliveira, a cinematografia portuguesa em sua vertente histórica foi objeto de atenção para especialistas de diferentes proveniências. No caso do GT História do Cinema Português (I), colocou-se em pauta a subjetividade que muitas vezes subjaz à percepção dos sucessos de bilheteira e a dificuldade em aferir o real impacto de uma obra cinematográfica, com debates em torno de uma questão sempre controversa no cinema português: o público. Assim, Sérgio Bordalo e Sá (Portugal/FLUL), com a comunicação “Amor de Perdição teve mais sucesso que E Tudo o Vento Levou – As audiências dos filmes de Lopes Ribeiro e Leitão de Barros”, partindo de uma metodologia desenvolvida por Paulo Cunha, procurou esclarecer a afirmação de António Lopes Ribeiro, e outros, de que o seu filme Amor de Perdição (1943) teria tido mais sucesso do que o clássico americano Gone with the Wind (Victor Fleming, 1939), tendo chegado à conclusão de que, apesar de dispor apenas de dados parcelares, tal afirmação está muito longe da realidade.

Por sua vez, Paulo Cunha (Portugal/UC-CEIS20) – “Para uma arqueologia do mercado de distribuição em Portugal” – analisou as dificuldades em estudar os dados sobre o público de cinema português antes de 1976. Partindo daí, apresentou a sua proposta metodológica para tentar chegar a números aproximados de audiência para as várias produções, com base nos documentos de empréstimo dos filmes. A sua finalidade foi determinar se o sucesso que muitas vezes se julga que o cinema do Estado Novo teria entre o grande público seria real ou não. Por fim, André Rui Graça (Reino Unido/UC London) apresentou interessante estudo prospetivo em que procurou quantificar a circulação internacional do cinema português, identificando países onde este tem maior presença e quais os filmes com maior sucesso. A comunicação do pesquisador – “A Rota do Consumo do Cinema Português Contemporâneo: contribuições para o seu estudo e análise” – acabou por apontar a predominância do mercado francês e a aceitação continuada em determinados países da obra de realizadores como Manoel de Oliveira, João César Monteiro e Pedro Costa – além de ressalvar determinados fenómenos contextuais, como Fados (2007), de Carlos Saura, que teve bastante sucesso em alguns países.

Mantendo a sintonia temática e o respeito à consonância da vertente histórica do cinema produzido em Portugal, o GT História do Cinema Português (II) teve como recorte debates sobre a relação entre cinema e cidade. A primeira comunicação deste painel – “A imagética do Bairro: a sua representação no Cinema Português (anos 60-90)” de Rita Bastos (Portugal/UBI-LabCom) – focou-se na análise territorial dos espaços fixados nas comédias portuguesas da década de 1940, cuja ação se centralizava em bairros populares. Bastos também percorreu, cronologicamente, da década de 1960 até à de 1990, a fim de analisar a cidade de Lisboa nos filmes Os Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha; O Mal-Amado (1974), de Fernando Matos Silva; O Sangue (1989), de Pedro Costa; e A Caixa (1994), de Manoel de Oliveira. Da proposta da investigadora resultou um instigante olhar sobre a perspectiva do bairro e a forma de pertença dos protagonistas aos espaços avaliados – a partir da nova formação da cidade e a segregação social, em uma mudança organizacional de Lisboa.

Já a comunicação “Vistas de cidades. O olhar sobre os espaços urbanos no cinema de Manoel de Oliveira”, de Federico Pierotti (Itália/U. Firenze), parte da filmografia de Oliveira para debater o olhar do realizador sobre a cidade – seus métodos de produzir a imagem citadina, desenvolvendo formas de reflexão de cunho cinematográfico e com o apoio de outras artes visuais. A interessante exposição de Pierotti lançou mão de excertos da filmografia oliveiriana com o objetivo da análise de sentidos mais óticos: vista cinematográfica; vista pictórica e fotográfica; vista panorâmica; vista arquitetônica e escultórica.

As apresentações do GT História do Cinema Português (II) finalizaram-se com “Corpografias urbanas: A errância em Dom Roberto e Os verdes anos”, de Laís dos Passos Lara (Brasil/UFF). Em sua fala, a investigadora partiu da perspectiva de corpografia urbana para sugerir uma leitura da cidade de Lisboa da década de 1960 por meio do corpo dos personagens principais nos filmes Dom Roberto (1962), de José Ernesto de Sousa; e Os Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha.

O quinto Encontro da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento se avizinha. E caberá ao ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa sediar a edição do evento que, esperamos, em 2015, continue a crescer e a multiplicar vozes e sotaques dispostos a promoverem o pensar sobre o cinema, o audiovisual e suas inúmeras possibilidades associativas.

[Aniki vol. 2, n.º 1 (2015): 156-161 | ISSN 2183-1750 | doi:10.14591/aniki.v2n1.132]

 

[1] Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Centro de Investigação em Artes e Comunicação, 8005-139 Faro, Portugal.

[2] Universidade Federal Fluminense, PURO (Pólo Universitário de Rio das Ostras), Rio das Ostras - RJ, 28895-532, Brasil.

[3] Universidade do Minho, Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, 4710-057 Braga, Portugal.