Visible Evidence
Raquel Schefer [1]

Visible Evidence — Conferência Internacional de Cinema Documental e Média, Filmhuset (Instituto Sueco do Cinema), Estocolmo, 15-18 de agosto de 2013.

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Imagem 1: Arbeiterclub in Sheffield (Peter Nestler, 1965) | © Peter Nestler

A vigésima edição da Conferência Internacional de Cinema Documental e Média Visible Evidence decorreu na Filmhuset, a Casa do Cinema do Instituto Sueco, entre os dias 15 e 18 de agosto de 2013, reunindo cerca de duzentos e cinquenta participantes: teóricos, críticos, estudantes de cinema, cineastas e arquivistas.

Um dos pontos altos da conferência foi a projeção do prólogo de Vargtimmen (A Hora do Lobo, 1967-1968), de Ingmar Bergman, em cópia do Instituto Sueco do Cinema, exibida originalmente em 2011 no Festival Internacional de Cinema de Berlim. Quando Vargtimmen estreou, em 1967, o prólogo integrava a narrativa fílmica, antecedendo a sequência em que Alma Borg (Liv Ulmann) se apresenta, sentada em primeiro plano frente a câmara, com a casa familiar das Ilhas Frísias em pano de fundo. O prólogo seria cortado em 1968 por decisão do realizador. Se a sequência inicial do filme é já de ordem autorreflexiva, o prólogo vem acentuar ainda essa dimensão: no espaço cenográfico de rodagem, Bergman explica em voz-off aos protagonistas, Ulmann e Max von Sydow (Johan Borg), o processo de criação do filme, dando-lhes instruções sobre como interpretar o casal atormentado, insone entre a noite e o amanhecer. A câmara conduz-nos, em plano-sequência, sem corte, do sofá, em que os dois atores estão sentados, ao plateau, mostrando, nesse movimento, os dispositivos cinematográficos de produção. A contiguidade entre os dois espaços, apontando a uma continuidade essencial entre a ficção e o documentário, a par da evidente encenação das ações e dos diálogos do prólogo e da materialidade do cinema que assim emerge, poderiam, num certo sentido, sintetizar a premissa geral do seminário Visible Evidence: as dramaturgias do real, declinadas em todos os seus casos.

A primeira edição de Visible Evidence teve lugar em 1993, na Universidade de Duke, nos E.U.A., organizada por Jane Gaines, cofundadora do evento juntamente com Michael Renov e outros investigadores norte-americanos. A conferência decorre dois anos depois da publicação de Representing Reality: Issues and Concepts in Documentary de Bill Nichols, uma das primeiras obras a sistematizar metodicamente o género cinematográfico, seguindo o exemplo de Documentary. A History of the Non-Fiction Film de Eric Barnouw (1974) [2] . A fundação e a consolidação de Visible Evidence coincidem e contribuem para a emergência do cinema documental como área de conhecimento, como Michael Renov tão bem notou no discurso proferido na magnífica Sala Dourada neo-bizantina da Câmara de Estocolmo. Por outro lado, a diversificação dos eixos temáticos e o alargamento da área de estudos da conferência, que desde 1993 decorre anualmente em diferentes cidades do mundo, denota as transformações do paradigma de representação. Uma análise crítica e arqueológica do programa da conferência ao longo dos seus vinte anos poderia, portanto, ser reveladora não só das modificações do género, mas igualmente das variações do modo como o mundo académico entrevê e interpreta a representação documental da realidade, exercendo um efeito modelador sobre ela. Tal não é, no entanto, o objeto deste artigo. É relevante, contudo, chamar a atenção para a concatenação ideológica patente na denominação Visible Evidence, que importa desmontar: a associação do adjetivo “visible” ao substantivo “evidence” — que pode ser traduzido como “sinal”, “indício” ou, se recuarmos ao sentido jurídico do termo, como “evidência”, “prova” ou ainda “depoimento”, “testemunho” ou “prova testemunhal” —, resulta em  algo como “prova visível” ou “evidência visível”, o que de imediato denota uma conceção indexical do género documental, perigosa porque excludente dos processos de construção audiovisual da realidade.

As atividades da conferência decorreram na Casa do Cinema do Instituto Sueco, soberbo edifício modernista concebido por Peter Celsing e finalizado em 1970. Os conferencistas convidados para a edição deste ano foram Jane Gaines, Bill Nichols, que encerrou o primeiro dia da conferência com uma interessante palestra sobre o texto irónico e o mockumentary; Michael Renov; Laura Rascaroli; Giovanna Fossati e Leshu Torchin, da Universidade de St. Andrews.

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Imagem 2: Reflections of the Past (Ingela Romare, 1988) | © Ingela Romare

O programa de Visible Evidence procura conciliar as habituais conferências e mesas-redondas com eventos sociais que propiciam o diálogo entre os participantes e  um consistente ciclo de cinema, numa colaboração entre a Universidade de Estocolmo, o Instituto Sueco e Filmform, o Arquivo Sueco de Cinema e Vídeo Experimentais, no âmbito do qual se destacou a projeção, em 16mm, de Enligt lag (1967), de Peter Weiss e Hans Nordenström; Arbeiterclub in Sheffield (1965), de Peter Nestler; e de Time Being (1991), de Gunvor Nelson. Noutra das sessões de maior destaque do ciclo,  foi exibido o filme Reflections of the Past de Ingela Romare — correalizadora, com Lennart Malmer, da série Mozambique is our Country (1971), produzida pela televisão sueca e filmada nas zonas libertadas de Moçambique —, atualmente doutoranda em Estudos Cinematográficos na Universidade de Gotemburgo. Reflections of the Past é um delicado exercício de reflexão poética sobre a experiência de Romare e Malmer na Guerra do Vietname entre 1971 e 1974. Combina material de arquivo dos filmes realizados por Romare e Malmer no Vietname com imagens da filha da realizadora contemplando a paisagem outonal sueca, deslocando dessa forma o cinema político para um espaço íntimo e subjetivo.

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Imagem 3: Bögjävlar (Gunnar Almer et al., 1977; Fotografia de Dan Hansson)
© Gunnar Almer

Importa ainda referir a projeção da curta-metragem documental Bögjävlar, realizada em 1977 por uma comunidade de ativistas homossexuais de Estocolmo e que retrata o quotidiano dos seus membros. A projeção foi seguida de uma interessante discussão em que participaram duas gerações de ativistas, entre os quais Gunnar Almer, um dos realizadores do filme e atualmente chefe do Departamento Internacional do Instituto Sueco do Cinema.

Os eixos temáticos da conferência — entre os quais etnografia experimental, arte documental, documentação das artes e arquivos alternativos — refletem amplamente as problemáticas atuais do campo dos estudos cinematográficos e do mundo contemporâneo em geral, promovendo ainda abordagens transdisciplinares.

Giovanna Fossati foi convidada para partilhar reflexões sobre a sua experiência como curadora do arquivo EYE de Amesterdão, particularmente no que concerne à política de preservação dos arquivos cinematográficos e às transformações introduzidas pelo digital. Fossati, que fez parte da equipa de restauro de We Can’t Go Home Again (1973) de Nicholas Ray, defendeu a importância da tecnologia digital na preservação, restauro e distribuição do património cinematográfico, exemplificado pelo trabalho desenvolvido pelo arquivo EYE, que comporta, entre as suas vastas coleções, um acervo de documentação pessoal de realizadores, guionistas e críticos cinematográficos holandeses.

Catherine Russell debruçou-se também sobre os arquivos cinematográficos, concretamente sobre o filme 1900 (1947) de Nicole Védrès, a partir do qual interrogou a noção de “arquivo”, o paradigma modernista, as práticas de resistência e o contexto de receção cinematográfica. Dagmar Brunow, da Universidade de Hamburgo, examinou os usos antiessencialistas da imagem de arquivo no quadro de uma conceção do filme-ensaio como instrumento epistemológico para o estudo da política visual. Centrando-se sobre o cinema de vanguarda produzido por grupos de ativistas negros do Reino Unido, Brunow defendeu que o filme-ensaio deve ser entendido como uma prática emancipadora que congregaria espaços discursivos para a emergência da memória. A apropriação de material de arquivo constituiria não só um modo de desconstrução das formas hegemónicas de representação, como faria também emergir espaços discursivos propícios à expressão de visões utópicas.

Nick Denes, codiretor da Palestine Film Foundation (Londres), proferiu uma comunicação sobre as imagens de arquivo históricas da Palestina, abordando também as problemáticas e as dificuldades da arquivística do cinema político. Um dos interessantes pontos mencionados foi o desaparecimento do Arquivo da O.L.P., fundado em 1967, durante a invasão israelita do Líbano em 1982. Denes defendeu a ideia de que o arquivo não terá desaparecido completamente, já que algumas das suas imagens foram incorporadas noutros filmes — como Ici et ailleurs (1976), de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville — num processo de migração (audio)visual.

O cinema palestiniano foi também objeto da comunicação apresentada por Tim Schwab, da Universidade de Concordia. Schwab entende que o documentário palestiniano produzido nas zonas ocupadas conforma um cinema “não autorizado” que conjuga, contém e reflete as múltiplas identidades palestinianas. É um cinema nacional sem nação.

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Imagem 4: Arquivos da emigração equatoriana — Archivo AMAME
© Melina Wazhima / Archivo AMAME

Os arquivos cinematográficos da América Latina mereceram a atenção de três comunicações. María Luna, da Universidade Autónoma de Barcelona, analisou a representação cinematográfica do conflito armado colombiano e os processos de reconstituição da memória, considerando que a prática do cinema militante não exclui nem é contrária a critérios autorais e estéticos. Beatriz Tadeo Fuica, da Universidade de St. Andrews, debruçou-se sobre o património fílmico uruguaio, partindo da premissa de que a base material do cinema, definida como as condições históricas de produção e de conservação, seria tão importante historicamente quanto o discurso fílmico em si mesmo. Já Jorge Flores Velasco, da Universidade da Sorbonne Nouvelle - Paris 3, abordou os arquivos da emigração equatoriana (Archivo AMAME) adotando uma perspetiva filosófica tecnológica, na linha de pensamento de Vilém Flusser.

Outro dos eixos temáticos de Visible Evidence foi a relação entre o ativismo, a mobilização social e a afetividade, bem como o estudo dos processos afetivos no cinema. Nessa linha de viragem interdisciplinar e de cruzamento de efeitos de conhecimento, afetos e afeções, o jornalista e ativista Peter Snowdon, vinculado à Universidade de Hasselt, ao analisar a produção audiovisual “vernacular” da Primavera Egípcia, introduziu a definição do cineasta como um “amanuense”, escrevente de um poema visual coletivo. Também Marta Zarzycka, da Universidade de Utrecht, abordou os acontecimentos do Cairo em 2011, aproximando a resistência política das representações de género. Alisa Lebow, realizadora e professora da Universidade de Sussex, analisou o conceito de “unwar film”, filmes que contrariariam a lógica militarista de grande parte dos documentários contemporâneos.

Marlène Monteiro, do Birkbeck College, analisou Leçons de ténèbres (2000) e Mon Voyage d’Hiver (2003), de Vincent Dieutre, à luz de um trabalho de exploração sensorial da pintura e da música realizado pelo cinema. Jamie Baron, da Universidade de Alberta, propôs uma reinterpretação fenomenológica dos processos de apropriação e de recontextualização de imagens de arquivo.

A diversidade de comunicações apresentadas face à persistência de determinadas temáticas, esboçando uma linha de continuidade que não pode ser inteiramente atribuída à definição de certos eixos temáticos pelos organizadores da conferência, é sem dúvida sintomática de um estado de coisas e de um estado do mundo. A grande quantidade de intervenções sobre cinema político, assim como a reavaliação do cinema a partir de uma política dos afetos e da sensação, não deixa de ser, portanto, reveladora de certas dinâmicas que atravessam e agitam a sociedade no seu todo, atingindo também o mundo académico. Este perscruta e reflete os acontecimentos e representações que lhe são exteriores e é também uma das instâncias em que se formam e removem as ideologias constituídas. Reunindo investigadores e realizadores de vinte e oito nacionalidades, a conferência Visible Evidence constituiu um espaço de discussão representativo das investigações em curso no campo dos estudos cinematográficos, cujos padrões revelam eventualmente uma conjuntura mais vasta.

[Aniki vol. 1, n.º 1 (2014): 114-120| ISSN 2183-1750 | doi:10.14591/aniki.v1n1.45]

 

Bibliografia

Barnouw, Eric. 1993. Documentary. A History of the Non-Fiction Film. New York/Oxford: Oxford University Press.
Gaines, Jane, ed. 1999. Collecting Visible Evidence. Minneapolis/Londres: Minneapolis University Press.
Nichols, Bill.  1991. Representing Reality: Issues and Concepts in Documentary. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Press.
Steene, Birgitta. 1999. Ingmar Bergman: A Reference Guide. Amsterdam University Press.

[1] Doutoranda em Estudos Cinematográficos na Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris 3 (França).

[2] Em 1983 e em 1993, a Oxford University Press publicou duas versões revistas, atualizadas e ampliadas da obra.