Novas & Velhas Tendências no Cinema Português Contemporâneo
Paulo Cunha [1]
João Maria Mendes (coord.). 2013. Novas & Velhas Tendências no Cinema Português Contemporâneo. Lisboa: Gradiva. 578 pp. ISBN 978-989-616-498-0.
Novas & Velhas Tendências no Cinema Português Contemporâneo (Gradiva, 2013), coordenado por João Maria Mendes, é o principal resultado escrito do projeto de investigação “Principais tendências no cinema português contemporâneo”, desenvolvido entre abril de 2009 e março de 2012 no CIAC – Centro de Investigação em Artes e Comunicação da Universidade do Algarve e da Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC). Digo escrito porque deste projeto resultou também a produção de seis curtas-metragens que depois comporiam a longa-metragem Um filme português, que estreou em outubro de 2011 no festival DocLisboa, e um conjunto de masterclasses com realizadores e produtores de cinema.
A equipa de investigação, coordenada por João Maria Mendes, teve a participação de diversos colaboradores: Jacques Lemière (convidado); Ana Isabel Soares, José de Matos-Cruz e Vítor Reia-Baptista (investigadores seniores); Carlos Pereira, Jorge Jácome, Marta Simões, Miguel Cipriano e Vanessa Sousa Dias (alunos da ESTC), a quem se juntaram posteriormente Levi Martins e Vítor Alves. Como se constata facilmente, o “núcleo duro” de colaboradores do projeto está ligado às instituições que o promoveram (ESTC e CIAC) e foram convidados investigadores “externos” para tarefas (aparentemente) pontuais.
O livro aparece estruturado em quatro partes: quatro textos compõem a introdução (pp. 27-137), 24 entrevistas a realizadores e produtores (pp. 141-396), nove ensaios (pp. 399-498) e cinco textos finais que compõem as conclusões (pp. 501-578).
O primeiro texto da introdução, assinado por Vítor Reia-Baptista e José Moeda, é breve mas esclarecedor, apresentando uma retrospetiva competente e eficaz desde a “crise” do cinema português dos anos 50, passando pelo novo cinema e culminando no PREC. O texto seguinte é uma útil tradução de um texto conhecido e amplamente difundido (em formato digital) de Jacques Lemière, um académico francês dedicado há décadas ao estudo do cinema português, que apresenta uma reflexão sobre o lugar de Portugal (comunidade e identidade coletiva) no cinema português. Segue-se o texto de Miguel Cipriano, que enuncia vários exemplos de filmes que ilustram uma mudança de paradigma na sociedade e no cinema português. Finalmente, João Maria Mendes (pp. 74-137) apresenta um interessante estado da arte a propósito dos modos de produção no cinema português nas últimas décadas.
De uma primeira observação, meramente aritmética a partir do número de páginas, é notório que a parte das entrevistas (255 páginas, 46%) constitui o núcleo mais significativo da publicação. É algo natural e expectável, uma vez que essas entrevistas foram também, e quase exclusivamente, o corpus de Um filme português.
Bem sei que é impossível ouvir toda a gente e que a concretização das entrevistas também depende da disponibilidade dos eventuais entrevistados, mas estranha-se a ausência de Paulo Branco e António da Cunha Telles do rol dos produtores entrevistados, e também de Fernando Vendrell (Lx Filmes), Luís Galvão Teles (Fado Filmes), Rodrigo Areias (Periferia Filmes, Bando à Parte), Pandora da Cunha Telles (Ukbar Filmes), João Trabulo (Periferia Filmes), António Ferreira (Zed Filmes e Persona Non Grata Pictures), Leonel Vieira (Stopline Films) ou João Figueiras (BlackMaria), só para dar alguns exemplos. No caso dos realizadores, apesar das 20 entrevistas incluídas na publicação, há falhas notórias: não há nenhum realizador da animação, e poderiam e deveriam lá estar nomes como Abi Feijó, Regina Pessoa, José Miguel Ribeiro, José Pedro Cavalheiro (Zepe) ou Pedro Serrazina; faltam também cineastas representantes dos que são oriundos de outras áreas artísticas, exteriores ao cinema, como Gabriel Abrantes, Tiago Pereira ou Gonçalo Tocha, que têm perspetivas certamente diferentes; faltou ouvir Pedro Costa, figura incontornável do cinema português dos últimos trinta anos (ainda assim, é assunto central de um dos textos da secção Ensaios); faltou ouvir mais pessoas que fazem sobretudo carreira no documentário — saúda-se a presença de Catarina Alves Costa, Sérgio Tréfaut ou Graça Castanheira — e na curta-metragem — estão lá apenas Sandro Aguilar ou João Salaviza —, para não reduzir o corpus à longa-metragem de ficção.
Mas faltou ainda ouvir técnicos que, não sendo realizadores, são figuras presentes no cinema português das últimas décadas: os diretores de produção como Henrique Espírito Santo ou Alexandre Cebrian Valente; os diretores de fotografia Acácio de Almeida ou Rui Poças; os diretores de som Vasco Pimentel, Pedro Caldas ou Joaquim Pinto; editores como Edgar Feldman, João Braz ou Telmo Churro; anotadores como Jorge Cramez, entre muitos outros. Se optássemos também por atores, a lista seria interminável, mas seria certamente interessante ouvir alguns desses rostos, nomeadamente Beatriz Batarda, Pedro Hestnes, Isabel Ruth, Ana Moreira, Inês de Medeiros, Luís Miguel Cintra, Rita Blanco ou Gonçalo Waddington, entre muitos outros. Também poderiam ter sido ouvidos compositores de música com vasta colaboração no cinema português, como o recentemente falecido Bernardo Sassetti. Faltou ouvir ainda os críticos (Luís Miguel Oliveira e João Lopes até foram ouvidos no filme que integrou o projeto), os programadores e curadores, os distribuidores e os exibidores (comerciais e alternativos, como o circuito cineclubista).
Cientificamente, não tenho dúvidas que estas faltas limitam significativamente a compreensão das tendências do cinema português contemporâneo como pretende o projeto. O destaque quase hegemónico dado aos realizadores condiciona a compreensão duma temática tão complexa, vasta e ambígua.
A falta de tempo não terá sido certamente um dos motivos para estas faltas, porque sei que foram entrevistadas outras pessoas, pelo menos mais 14 do que aquelas que constam nesta publicação: Jorge Silva Melo, Pierre-Marie Goulet, Tiago Guedes, Bruno de Almeida, George Felner, Artur Ribeiro, Cláudia Varejão, Pedro Sena Nunes, Miguel Clara Vasconcelos, Jorge Cramez, Sofia Trincão, João Dias, João Mazeda e Henrique Espírito Santo. Sei disso porque, em Setembro de 2010, foi lançada uma primeira versão desta obra, apenas em versão print-on-demand (ISBN 978-972-9370-09-0), e essas 14 entrevistas estão disponíveis lá. Mas, para não ser injusto, repito o que disse alguns parágrafos antes: bem sei que é impossível ouvir toda a gente e que a concretização das entrevistas também depende da disponibilidade dos eventuais entrevistados.
No primeiro texto da secção Conclusões, João Maria Mendes explica apenas que as entrevistas se dividem por “três gerações pós-Cinema Novo”: uma primeira de nascidos entre 1949 e 1957; uma segunda de nascidos entre 1960 e 1967; e uma mais recente com nascidos entre 1972 e 1984. É, na minha opinião, uma justificação demasiado breve e simples para sustentar as escolhas dos entrevistados, ainda mais que tem um peso determinante na estrutura do projeto.
Sobre este núcleo documental, o coordenador esclarece ainda que as entrevistas procuram, mais do que precipitar “sínteses ou conclusões”, sobretudo expressar as “opiniões” de pessoas com trabalho prático e experiência no terreno (p. 501). E continua, acrescentando que esta investigação “visa[va] recolher elementos para um diagnóstico, descrever um estado de coisas, caracterizá-lo e permitir aos seus estudiosos e leitores que dela tirem as conclusões que considerem mais pertinentes” (ibidem). Este alerta é importante e muito útil, porque relativiza e até desresponsabiliza os autores, mas não deixa de se estabelecer um corpus de temáticas, autores e filmes que condicionam as leituras e as interpretações dos potenciais leitores e investigadores.
A terceira parte, designada de Ensaios, reúne nove textos com propósitos distintos: os três primeiros abordam três autores fundamentais que, por razões distintas, não foram ouvidos (Manoel de Oliveira por José de Matos-Cruz, Pedro Costa por Miguel Cipriano, e José Álvaro Morais por João Maria Mendes); outros três textos sobre relações entre cineastas muito baseados nas entrevistas anteriores (“Nem velho nem novo: Outro documentário (Abordagem das tendências do documentarismo português no início do séc. XXI)” por Ana Isabel Soares; “O tempo dos outro: João Salaviza e Cláudia Varejão – No interior de uma nova geração” por Carlos Pereira; e “Imagens de mulheres em Margarida Gil e Teresa Villaverde” por Vanessa Sousa Dias); e dois textos mais reflexivos e ensaísticos (“A expansão da imagem – A atmosfera do filme sobreposta à diegese” por Jorge Jácome; “Microcosmos no cinema português contemporâneo: Um mundo pós-Big Brother” por Carlos Pereira); e, no final, uma espécie de manifesto corporativo (o autor é produtor), próximo do que foi O ofício do Cinema em Portugal (1967-68), intitulado “Cinema português: Que fazer para torná-lo mais competitivo e mais próximo do público”, assinado por Paulo Leite, que me parece que caberia melhor nas conclusões.
São textos muito desiguais, quer nos propósitos como na redação. Se, por um lado, uns são claramente académicos e estão bem estruturados, outros são mais próximos do texto de divulgação ou divagação jornalística, onde nem se entende muito bem qual é o propósito ou a metodologia, e apresentam mesmo falhas graves, nomeadamente a falta de citação de fontes ou referências bibliográficas de autores citados: por exemplo, na pág, 457 é citada entre aspas uma frase de João Bénard da Costa sem qualquer referência ao título ou ano de publicação e, na pág. 452, é transcrito um excerto de José Gil, identificado na bibliografia, mas sem que se assinale a página original; outro exemplo, na pág. 451 é referido que o programa Big Brother “bateu recordes de audiência, tendo conseguido 70% de share no seu último episódio, na noite de 31 de Dezembro de 2000, quatro meses após a sua estreia”, mas não é citada nenhuma fonte que o comprove.
Na minha opinião, para sustentar estas e outras reflexões, falta uma série de análises aprofundadas e mais documentadas sobre a importância e influência de várias instituições que contribuíram, por ação e omissão, para o que é, ou se entende ser o cinema português contemporâneo: em primeiro lugar, a própria escola onde se desenvolveu este projeto (que professores? que curricula? entre outras questões), que formou gerações sucessivas de cineastas e técnicos; a programação da Cinemateca Portuguesa que, sobretudo após a autonomia administrativa conquistada em 1980, foi fundamental na consagração e internacionalização de vários cineastas portugueses; a estratégia de financiamento desenvolvida pelo IPC/IPACA/ICAM/ ICA desde a sua criação em 1973; a RTP, tanto nas políticas que assumiu enquanto “exibidor” quanto no seu papel de produtor, nomeadamente no consulado de Fernando Lopes enquanto responsável pelo departamento de coproduções internacionais (entre 1979 e 1993), que foi determinante no apoio financeiro à produção de consagrados autores mas também de inúmeros jovens cineastas. Finalmente, mais alguns exemplos de questões que me interessaria ver analisadas: qual o papel do circuito de festivais nacionais e internacionais que, sobretudo a partir dos anos 80, desempenharam um papel crucial na definição e divulgação internacional da marca “cinema português”? qual a importância ou potencialidade das plataformas digitais (video-on-demand, redes sociais, streaming pay-per-view, entre outros) na distribuição, circulação, promoção e receção crítica do cinema português de produção mais recente e mesmo em clássicos mais emblemáticos que permanecem longe das salas de cinema comerciais? Qual a importância das políticas públicas para o cinema português, nomeadamente na atribuição de subsídios e na promoção internacional, na “moldagem” e na consolidação de uma história e estética do cinema português? Qual a influência das dezenas de coproduções envolvendo produtores portugueses na criação de modos de produção e de circulação alternativos para o cinema português e para a sua internacionalização, nomeadamente no espaço lusófono, ibero-americano e europeu?
Algumas destas questões são abordadas de forma demasiado passageira e generalista em alguns textos (pp. 477-498; 516-530; 551-559; 563-571; 572-578), mas o trabalho de fundo — de inventariação, caracterização, e análise concreta — ficou por fazer e seria fundamental para compreender algumas das questões mais complexas que estão no centro deste projeto. Também aqui, a falta desses elementos pode condicionar significativamente futuras leituras e interpretações feitas a partir do que ficou feito neste volume.
De resto, fica por demais claro que a parte fílmica seria a tarefa central deste projeto. O livro agora publicado, atendendo à existência da versão print-on-demand desde Setembro de 2010 referida anteriormente, foi produzido em apenas um dos três anos de duração do projeto. Dessa primeira versão para a agora impressa registam-se algumas diferenças: na introdução, o texto de Jacques Lemière foi traduzido para português e surge um novo texto assinado por Miguel Cipriano (“O mistério das origens ou o cinema português no tempo da pós-ruralidade”); das entrevistas, desapareceram as 14 anteriormente referidas e os breves textos de teor crítico sobre os filmes da quase totalidade dos realizadores entrevistados; desapareceram, da secção Ensaios, cinco textos (dois de teor monográfico sobre filmes de Maria de Medeiros e António-Pedro Vasconcelos; um sobre o trabalho do compositor Bernardo Sassetti em vários filmes portugueses; e dois mais reflexivos sobre o trabalho de escrita e sobre o cinema digital); finalmente, desapareceu um arquivo documental que incluía diversos textos críticos sobre filmes portugueses produzidos no estrangeiro e uma coletânea de legislação e de manifestos profissionais relevantes no debate público sobre produção de cinema em Portugal.
Em suma, trata-se de uma obra utilíssima para o estudo do cinema português das últimas décadas, mas fico com a frustrante sensação de que, dispondo das condições financeiras permitidas pelo apoio da FCT, se poderia e deveria ter ido muito mais além do trabalho apresentado. Pior ainda, dada a crescente concorrência verificada nos últimos anos nos concursos de apoio financeiro da FCT, temo que tão cedo não haja condições semelhantes para que se volte a financiar um projeto de investigação que pretenda abordar o cinema português contemporâneo com outro enquadramento teórico ou metodológico. Compreendo os objectivos pedagógicos do projeto e a condição endogâmica de incluir na equipa de trabalho muitos alunos em formação da Escola Superior de Teatro e Cinema, mas para um projeto desta dimensão acho que se deveria ter sido mais ambicioso e incorporar investigadores que desenvolvem ou desenvolveram recentemente, nos seus projetos de mestrado, doutoramento ou pós-doutoramento, importantíssimas investigações interdisciplinares que enriqueceriam certa e significativamente os resultados apresentados. Ao invés, com tudo o que isso implica de positivo e negativo, parece-me que este projeto de investigação investiu, de forma assumida e consciente, mais na formação de alguns dos seus colaboradores do que na investigação propriamente dita.
É óbvio que o coordenador fala sobre o enquadramento da investigação e esclarece que se pretendeu fazer uma “investigação em artes” (“Quality Research in Arts & Culture in Higher Education Institutions”), concretamente uma “investigação-baseada-na-prática”, que se afasta, por exemplo, de um trabalho típico da historiografia (do cinema) ou da sociologia aplicada e que procura uma vertente mais prática (“trabalhos aplicados, articulados com a prática”) e um “contacto directo com fontes primárias de informação” (pp. 14-17), que aqui parecem ser entendidas apenas como os filmes e os seus realizadores e produtores. Por fim, é dito ainda na introdução, que este trabalho é feito “de dentro para fora” e que é direcionado sobretudo aos cineastas: “Tendo em mente estas limitações, a equipa de investigação espera ter contribuído para o esclarecimento e a compreensão das condições em que se faz cinema em Portugal, e ter entreaberto portas que ajudem cineastas a reflectir sobre o que está ao seu alcance alterar, com vista a uma melhoria dessas condições – e à realização de melhores filmes” (p. 17).
Os objectivos centrais do projeto, enunciados logo no início (p. 11), e que são também desta publicação, resumem-se em quatro questões fundamentais: Quais são, hoje, as principais características do desenvolvimento de projetos para cinema em Portugal? O que pensam os realizadores e produtores cinematográficos sobre o cinema português? Que conclusões tirar das suas opiniões, relatos de experiências e análises da situação contemporânea? Que novas tendências surgiram no cinema português, nos primeiros anos do século XXI?
Não podia estar mais desiludido e em maior desacordo com os objectivos traçados e com a estratégia adotada: o contributo de metodologias e de reflexões teóricas de outras áreas disciplinares seriam fundamentais para se ter acesso a outro tipo de fontes e para obter análises mais sustentadas e objetivas; por outro lado, o objeto cinema português interessará tanto (ou mais...) aos estudiosos de diversas áreas disciplinares como aos profissionais que trabalham na área e parece-me difícil, dado o perfil da maior parte dos profissionais do setor e os resultados apresentados, que este projeto possa contribuir para a melhoria dos filmes ou das suas condições de produção, distribuição e exibição. Finalmente, não vejo que o volume apresente respostas satisfatórias a duas questões centrais (Quais são, hoje, as principais características do desenvolvimento de projetos para cinema em Portugal? Que novas tendências surgiram no cinema português, nos primeiros anos do século XXI?) – precisamente aquelas que exigiam uma metodologia mais analítica e reflexiva e, sobretudo, mais dialogante com outros trabalhos feitos nos últimos anos. Felizmente, o volume apresenta material suficiente para que potenciais leitores e investigadores possam esboçar respostas a duas das questões também formuladas inicialmente: O que pensam os realizadores e produtores cinematográficos sobre o cinema português? Que conclusões tirar das suas opiniões, relatos de experiências e análises da situação contemporânea?
[Aniki vol. 2, n.º 1 (2015): 149-155 | ISSN 2183-1750 | doi:10.14591/aniki.v2n1.138]
[1] Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, 3000-186 Coimbra, Portugal.