CFP: Atrizes e personagens femininas nas transições democráticas (prazo: 15 de Julho de 2024)
Os cinemas dos períodos de transição política são terreno fértil para analisar os modos como a história e a educação cultural se inscrevem na memória pessoal e corporal, através de gestos, emoções e novas formas de expressão de desejos. As mudanças sociais e as tensões ideológicas que ocorrem no trabalho, na família e na esfera pública têm um claro impacto não só no cinema explicitamente político e militante, mas também nos géneros populares, tanto nas narrativas e estéticas herdadas do período anterior como nas propostas nascidas no calor dos acontecimentos políticos.
As atrizes, que desde os primórdios do cinema têm ocupado um lugar central na produção cultural de emoções, psicologias coletivas, imaginários e valores, desempenharam um papel particularmente importante nestes períodos de transição, refletindo as tensões históricas e ideológicas do seu contexto. Em muitos casos, a introdução de mudanças legislativas e novas formas sociais refletiu-se ou sincronizou-se com o seu papel de estrelas de cinema e ícones populares, a ponto de, por vezes, se tornarem símbolos culturais dessas transformações. É o caso de Victoria Abril, Carmen Maura, Ana Belén, Ángela Molina, em Espanha; Lia Gama, Guida Maria, Zita Duarte and Ana Zanatti em Portugal; Fernanda Montenegro, Sônia Braga, Lucélia Santos e Fernanda Torres no Brasil; Gloria Münchmeyer, Amparo Noguera, Catalina Saavedra, Paulina Urrutia no Chile; Camila Perisé, Susú Pecoraro, Norma Aleandro na Argentina, entre outras. Além disso, as atrizes das novas gerações conviveram muitas vezes com aquelas que já haviam trabalhado no período anterior, num contraste que manifestava as complexas tensões entre amnésia e memória histórica.
As transições democráticas ocorridas no sul da Europa na década de 1970, em resultado da queda do Regime dos Coronéis na Grécia (1974), da Revolução dos Cravos em Portugal (1974) e da morte do general Franco em Espanha (1975), são paradigmáticas de como o papel das atrizes se sincronizou com as mudanças políticas, algo que também aconteceu no leste do continente com a queda do Muro de Berlim (1989) e dos regimes comunistas, bem como com a desintegração da União Soviética (1991) e da Jugoslávia (1991). A esses casos no contexto europeu somam-se os períodos de transição iniciados principalmente após o fim das ditaduras latino-americanas, como as da Argentina (1983), Brasil (1985) e Chile (1990). Em todos esses casos, a discussão do papel das mulheres na esfera pública, bem como a representação de sua subjetividade e desejos, formaram uma linha fundamental dos filmes que surgiram em paralelo com as mudanças sociopolíticas, e as atrizes tiveram um papel fundamental nesse processo.
Neste dossiê queremos enfocar como durante os períodos de transição democrática em países como Espanha, Portugal, Grécia, Argentina, Brasil, Chile e outros, as atrizes construíram subjetividades femininas diferenciadas, que transcenderam os imperativos sociais, em maior ou menor diálogo com os debates dentro do pensamento e ativismo feminista. Seguimos a proposta de Teresa de Lauretis de «repensar a subjetividade feminina, levando em conta quais práticas implica e quais necessidades sustenta o desejo quando atua desde um corpo de mulher» (Lauretis 2000, nossa tradução). Queremos analisar a função criativa das atrizes na crítica aos estereótipos, o domínio da autorrepresentação que podem adquirir e os modos de produção de novas subjetividades que, partindo do género como representação sem referente (como representação de representações), não temem manipular modelos herdados para introduzir formas de desejo não previstas que contemplem todas as diferenças e contradições existentes dentro do feminismo em sua dupla presença: como diferenças que existem dentro do pensamento feminista e como divisões que pertencem a uma mesma subjetividade.
A investigação sobre a evolução das atrizes em momentos de transição democrática pode permitir elucidar se, de forma indireta ou oculta em relação aos discursos em primeiro plano dos filmes, produzem personagens e imagens dissidentes, alternativas e contraditórias que visibilizam a diferença sexual. Essas subjetividades, apontadas nas atrizes e suas personagens, podem ser vistas e estudadas como referentes de imagens de mudança, emancipação, construção de novas formas de desejos típicas das experiências femininas e construção de outras narrativas pouco mostradas sobre as mulheres.
Os artigos podem incidir, ainda que não exclusivamente, nas seguintes linhas de investigação:
- Análise das formas de representação das mulheres através das personagens e do trabalho criativo específico das atrizes, durante processos históricos de transição democrática;
- Estudos da produção de novas formas de subjetividade feminina mediante a representação interpretativa de motivos narrativos e visuais sobre temas como o trabalho, a economia e as relações de classe; a família; a sexualidade e o corpo; o amor e o desejo; a violência baseada no género, e os direitos e alterações legislativas;
- Explorações da função cultural das atrizes, através do seu trabalho e de suas imagens mediáticas, em períodos de transformações sociopolíticas, para categorizar estereótipos e detectar formas de diferenciação, dissidência e contradição nas experiências das mulheres;
- Estudos a partir de uma perspectiva de género que incluam a concepção da atriz como sujeito criativo na construção política de novos imaginários femininos e nos processos cinematográficos, com foco em períodos de transição democrática.
Este dossiê temático é coordenado por Gonzalo de Lucas (Universitat Pompeu Fabra, Barcelona), Ana Daniela de Souza Gillone (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo) e Josep Lambies (ESCAC - Universitat de Barcelona).
Gonzalo de Lucas é professor associado na Universitat Pompeu Fabra, onde pertence ao grupo de pesquisa CINEMA e dirige o projeto de pesquisa «Producción de nuevas subjetividades en los personajes femeninos y las actrices: el cine español del final de la dictadura a la post-transición (1975-1992)». Como professor, ministra aulas de montagem, ensaio e direção de cinema. É também diretor do Postgrado en Montaje Audiovisual de la UPF-Barcelona School of Management e faz parte da equipa de programação do Xcèntric, o cinema do CCCB. Escreveu artigos em mais de cinquenta livros e em publicações como Cahiers du Cinéma-España, Rockdelux, L'Atalante, So Film, Sight and Sound ou o suplemento «Cultura|s» de La Vanguardia. Publicou também os ensaios Vida secreta de las sombras e El blanco de los orígenes e, com Núria Aidelman, Jean-Luc Godard. Pensar entre imágenes, e em 2018 editou Xcèntric Cinema. Conversaciones sobre el proceso creativo y la visión fílmica (CCCB).
Ana Daniela de Souza Gillone é pesquisadora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades – Universidade de São Paulo (EACH-USP) com bolsa PDE-CNPq – estágio de pesquisa junto ao grupo CINEMA Colectivo de Investigación Estética de los Medios Audiovisuales da Universitat Pompeu Fabra. Seu trabalho atual sobre atrizes e personagens femininas no cinema latino-americano dialoga com os estudos sobre a atuação de estrelas espanholas desenvolvidos pelo Coletivo. Realizou pós-doutorado no Departamento de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), com bolsas do CNPq e da FAPESP. Como professora convidada, lecionou um módulo sobre cinema latino-americano no Máster en Estudios Latinoamericanos–Instituto Iberoamericano da Universidad de Salamanca (USAL). Leciona módulos de cinema latino-americano oferecidos como disciplina optativa no Centro Universitário Maria Antônia da USP e na FESPSP - Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. É curadora de exposições (Cinema Latino-americano/ Mulheres Cineastas Latino-americanas/ O feminino no cinema da América Latina) realizadas nas unidades do SESC em São Paulo.
Josep Lambies é doutor em Comunicação pela Universitat Pompeu Fabra. Desenvolve a maior parte de sua atividade docente na Escola Superior de Cinema i Audiovisual de Catalunya–ESCAC, centro anexo à Universitat de Barcelona, onde leciona disciplinas de estudos fílmicos, história do cinema, géneros cinematográficos e metodologias de investigação em cinema e audiovisual, tanto no Grado de Cinematografía como no Máster Oficial en Estudios de Cine y Culturas Visuales. Publicou os seus últimos trabalhos de investigação em revistas como Feminist Media Studies e L’Atalante. Faz parte da equipa de investigadores do projeto «Producción de nuevas subjetividades en los personajes femeninos y las actrices: el cine español del final de la dictadura a la post-transición (1975-1992)» dirigido pelo Dr. Gonzalo de Lucas e que se desenvolve no contexto do grupo CINEMA da Universitat Pompeu Fabra.
O prazo para submissão de artigos completos e originais é 15 de julho de 2024.
Os artigos recebidos serão sujeitos a um processo de seleção (pelos editores) e revisão cega por pares (por avaliadores externos). Os textos devem ter até 8000 palavras e incluir, em português e inglês (e também em espanhol, se essa for a língua do texto): um título, um resumo de até 300 palavras e um máximo de 6 palavras-chave.
Antes de submeter o seu artigo, reveja todas as instruções aqui.
Em caso de dúvida, contacte: aniki@aim.org.pt
Referências
De Lauretis, Teresa. 2000. Diferencias. Etapas de un camino a través del feminismo. Madrid: Horas y Horas.